quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

O Espadachim Lunar


Irineu
defende os ovos da Páscoa
do sopro sedutor da lua
e do nascer do sol.

Mas um dos ovos
no vento lunar se eleva.
De espanto pára no alto,
lua sem luz da lua nova.

O sol a nascer
quer resgatar, assim nova,
a lua,
e agiganta-se para a tocar.

Irineu,
então,
transforma-se
no Espadachim Lunar.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

A Bóia Amarela em forma de Flor



O senhor de sandálias, chapéu branco, guarda-sol às riscas e toalha de banho ao ombro tenta desesperadamente abrir o fecho da mochila. Pára junto ao limite da rebentação. Coloca tudo no chão e despe a camisola.

Da mochila retira uma bóia amarela em forma de flor, que enche e coloca nas ondas. Fica com a água pelos joelhos e com o olhar suspenso nas pétalas flutuantes.

O mar é um lago de contínuos tons de anil, o azul só ao fundo se define. Uma alga de mil filamentos castanhos incorpora a areia molhada e quase desaparece. Os pequenos seixos rolados salteados pela maré coreografam o único movimento que assiste a este olhar.
O vento volteia nos panos dos guarda-sóis mas já não produz trinados. Redemoinha, mudo, entre os ombros do homem.

De súbito avista-se um veleiro de dois mastros. Avança rapidamente para a praia. A bóia amarela avança em direcção ao horizonte e o veleiro vem do horizonte. Aproximam-se.

Uma mulher salta da amurada e nada para a bóia. O homem mergulha e nada esguio na água. Até à bóia.
Encontram-se. Abraçam-se.

Já na praia montam o grande guarda-sol de listas. A alga sacode-se. Rebolam abraçados na toalha de veludo. O vento trina suavemente no riso louro da mulher.

O mar salteia as pedras roladas na areia, agora também com búzios e conchas nacaradas que ela apanha e coloca sobre a bóia amarela:
- Era o pólen que faltava.

Batuques sobre a Praia


Há batuques sobre a praia.
Primeiro longe.
Depois cada vez mais perto.

Os ritmos quentes
sobem em cascata
e derramam-se na areia.

Perante os corpos do Verão
as notas abandonam
a partitura do vento.
Em escalada esculpem
as novas formas
redondas e nuas.

Numa coxa
saricoteia
uma colcha de colcheias.

Fusas em parafuso
fundem-se no dedo do pé
do rapaz sisudo.

Três jovens negras,
retintas negras de biquini,
cada uma
é uma nota de tercina.

Cruzam-se novas toadas
gingam missangas
bailam gargalhadas.

E fica ainda mais doce
o já doce espanto da praia.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Queijo de Odeleite


Sinto o aroma do leite de cabra com a flor do cardo quando vejo a Ribeira de Odeleite a fundir-se no rio Guadiana. E nem os cem turistas seniores norte-americanos que tomaram de assalto a estrada por onde seguia com o meu dois cavalos vermelho me desviaram do propósito de encontrar a queijaria da Dona Olívia.

Resolvi virar na primeira estrada de terra batida - já não me recordava ao certo como se chegava à povoação de Foz do Odeleite. Mas não era por ali. Estava numa propriedade ladeada pelos dois cursos de água, com figueiras, alfarrobeiras, amendoeiras e oliveiras, com muito pasto e cabras, cujo dono era um inglês que não estava cá porque não podia edificar em zona de Reserva Ecológica Nacional.

Voltei para trás e passei novamente pelos turistas, já quase todos no convés do barco que, subindo o rio, os levaria à zona de arqueologia industrial do Pomarão, depois de Alcoutim. Entrei noutro caminho. Reconheci a estrada e em breve estava num emaranhado de casas brancas onde já nem conseguia virar o carro. Perguntei onde morava a Dona Olívia, e uma senhora toda de negro, com lenço na cabeça, indicou-me que era a última casa, com vista para o Guadiana e para Espanha.

Tive medo dos cães e bradei "Dona Olívia, Oh Dona Olívia!!!!"
Apareceu-me por detrás do tilintar das fitas azuis e amarelas que protegiam a porta, uma figura baixa, magra, discreta. "O que deseja?" " Queijos, ainda tem?"
Entrou, foi buscar um casaco, disse alguma coisa ao seu homem, encostou a porta, "Vamos à queijaria."

Era numa antiga venda, conservava o balcão de madeira logo quando se entra, ligado a duas salas: uma pequena, onde se armazenam os queijos para cura, e outra maior, com várias panelas de leite no chão, onde se ferve o leite e se retira o soro numa banca de aço inox. Tudo impecavelmente limpo.

Junto ao balcão está o frigorífico vertical em vidro, onde se podem ver os queijos imaculados e a mágica infusão da flor do cardo dentro de um copo. "Este líquido castanho é adicionado ao leite para coalhá-lo, depois de fervido e de ter a temperatura ideal" explicou-me Dona Olívia.

"Aprendi com a minha avó. A minha mãe não queria saber de queijos. Fazia em casa, para o meu marido e para o meu filho, e só depois, como a venda não estava a dar nada, é que fizemos esta queijaria. São eles que cuidam e ordenham as cabras, eu, a minha nora e a mãe dela fazemos os queijos."

Quis saber se era suficiente durante todo o ano para a família "Sim, em épocas boas como esta faço 300 queijinhos dia sim dia não. O meu filho no Verão vai para o restaurante ali em baixo. Nessa altura o movimento dos barcos que sobem e descem o rio com turistas é muito maior e aumentam as encomendas de ensopado de enguias e de lebre com feijão branco."

Dona Olívia cultiva a terra: batatas, tomate, melão, cebola e tudo o resto que é preciso. "Mas é uma tristeza ver os campos abandonados, as casinhas a cair. As nossas são casinhas bonitas, não como aqueles prédios que há em Faro, muito altos. E é mesmo para lá que estão a ir todos..."

O filho dela ficou. "Temos cabras e queijos. Mas não julgue que isto de ordenhar 150 cabras por dia é fácil. É preciso uma grande quantidade de leite para os queijos porque o leite de cabra tem muito soro, rende pouco."

Não tem nada a indicar que vende queijos, mas não precisa, porque quem conhece volta. Dona Olívia não consegue responder a todos os pedidos. Agora, por exemplo, vê-se aflita para ter 4000 queijos curados encomendados por uma residencial...

Tem pena que os campos estejam todos a ser comprados por estrangeiros. "Alguns juntam parcelas pequenas numa grande propriedade e até vivem lá dentro em caravanas quando não os deixam construir."

Despedi-me com a promessa de voltar.
Antes de entrar no asfalto, parei, rodeada da branca flor da esteva, para comer à dentada um dos queijinhos que trazia.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Dom Fuínho e o Palhaço Fuí




Dom Fuínho, regente da banda,
tem um boné e bigodes verdes,
uma batuta e um segredo:
Dom Fuínho é o Palhaço Fuí.

Mas na banda ninguém sabe.
Ninguém sabe alegre Dom Fuínho.
Porque tristes são as canções
de saudade, de melodia.

A batuta de Dom Fuínho
chora no olho lágrimas.
Não há salsas, não há valsas
não há canções de esvoaçar.

Regia a banda, Dom Fuínho,
e é apanhado em flagrante:
- Trouxe o nariz do Palhaço Fuí!
gritou a Pandeireta Julieta.

Então o Palhaço Fuí
sai pelos bigodes de Dom Fuínho
e corre, corre...derramam-se colcheias
em cambalhotas de risos!

O Palhaço Fuí cavalga
nos arpejos em gargalhada,
escala as sinfonias de riso
da nova música da sala!

E Dom Fuínho com ele rebola!
Desde esse dia, Dom Fuínho,
não tem batuta e é o Dom Fuí.
Regem em danças os seus bigodes.

E esvoaça a banda, de nariz encarnado.

Buzinopé em Metamorfose Abrupta




buzinopé em metamorfose abrupta

estremece a mão em transe repentina

brilham abraços em lance arrebatado

ondula a coxa em transmutina

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Fada Almofadada


A almofada cheira a mofo.
Logo não é uma almofada,
é uma mofada.
Ou uma mó de fada.
Também pode ser.

A lareira era um lar.
Era. Já não é.
Agora é uma eira.
E é uma ira não ter lar,
se bem que uma eira é um lar,
grande e redondo
de vento e cal…
Uma eira é um lar solar.
Afinal uma eira é mesmo só lar.

O Fantocha perdeu a tocha.
Ficou a ser apenas o Fan.
E pronto.

Como vamos terminar
o Fan levou uma lufada de ar
e acendeu-se de novo a tocha
na eira solar.

Só mais uma adivinha:
o que é uma fantocheira almofadada?...!?...
É uma fada que cheira a erva cidreira.
E pronto.
Pronto.

Aia na Alcofa


Dentro da alcofa
está uma aia

aia que aia
a aia da saia

Na saia tem alfafa
al fofa na alcofa

aia que aia
de alfafa na saia

Com medo aia a aia
da Fada de Al Faia

aia que aia
de alfafa na saia

Da Fada de Al Faia
é a alfafa da saia

aia que aia
a aia da saia

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Campos de Vento e de Morte



O Sr José Bento, moleiro, nasceu durante uma tempestade de sudoeste em que se partiram as velas do moinho. A sua música é a do vento nas pás e durante as migrações das aves, em Setembro, fica ausente. Alguns dizem que a sua aura voa para África com os abutres do Egipto.

Ao certo, ao certo, nunca mais foi o mesmo desde que um estrangeiro lhe contou que os andorinhões não dormem. São aves planetárias, dão a volta ao mundo sem descansarem. Adormecem em pleno voo e ao mesmo tempo estão despertas, porque dorme um hemisfério cerebral de cada vez.

José Bento é magro e não anda, antes levita, transparente, polvilhado de farinha. É de poucas falas, talvez por dizerem que rouba no farelo. Diziam, porque hoje já ninguém lhe leva cereal para moer. Mas também não é por isso que é mais falador.

Por fora não ri. Mas por dentro viaja com as aves (José é o próprio vento).
Mesmo que não moam, as pás funcionam num círculo ininterrupto porque há sempre vento perto de Sagres. Basta uma aragem pequenina no pano e a madeira roda. Toda a engrenagem está impecavelmente oleada para o concerto do vento.

Este ano começaram a funcionar os cinquenta aerogeradores. Ficam nos corredores migratórios das aves, perto do Sr José Bento Moleiro. Os aerogeradores são uma orquestra de trombones e o som do moinho é o solo de uma flauta de bisel. Mas os ouvidos de quem mói escutam apenas a cadência do engenho de vento.

O maior problema são as aves. Deixaram de passar. Já foi Outubro. Já foi Novembro. Princípio de Dezembro e a aura de José Moleiro não voltou a voar.
Perdeu-se para sempre num eterno solilóquio com o vento.

Sereia Seixa


Por Sereia Seixa se apaixonaram o Monte e o Mar.
Por ela as águas do rio fizeram foz na Praia da Rocha.

Seixa é do tamanho de um ramo fino de esteva
e tem sardas na pele branca.
Se todas as flores de esteva do mundo forem mergulhadas no mar
exalam uma fragrância mista de mato e maresia.
Assim cheira Seixa.

Os seus cabelos são cristais de salsugem gerados pelas ondas
que ora que ora, que batem que batem
e largam gotas suspensas no ar.

Para o Monte, Seixa é flor.
Seixa enche de plantas aromáticas o caminho de terra rossa
que leva ao lago de água salgada.

Para o Mar, Seixa é sal.
Seixa tece a película finíssima
que se precipita no estrato de corais à roda do seu lago.

Destes corais Seixa tomou vida
quando a Praia era como a Grande Barreira de Recifes.
Mar baixo, quente e cheio do move – move de peixes coloridos.

Seixa nasceu como um coral
(os corais são as flores do oceano).
Surgiu do recife e apresentou-se.
Ao Monte. Ao Mar.

O mar disse:
– A Sereia é minha, por ela criarei as marés e as ondas.

O Monte disse:
– A Sereia é minha, por ela criarei os vales e as nascentes.

Desde esse dia nunca mais houve paz.

Umas vezes o mar avança e pouco resta do areal.
Então o Monte encarrega o rio de trazer muita areia para afastar o mar.
Porque a Sereia Seixa precisa de terra para o seu jardim.

Noutras vezes, o Monte quebra-se em derrocadas
empurra o Mar para muito longe.
Então vêm de mansinho as ondas cobrir a terra.
Porque a Sereia Seixa precisa ter longos cabelos de salsugem.

Neste vai – e - vem do monte
Neste vai – e - vem do mar
Leva que leva terrareia
Leva e lava ondimar
P´ra sempre…p´ra sempre…

Secreta Vida Geológica


A suportar a rocha em camadas horizontais da praia saem da areia estátuas de homens que sobem os últimos degraus da escada geológica.

Quando chegam à superfície, uns pela cintura, outros ao nível dos ombros, param. São estátuas - testemunha.

Em muitos a própria cabeça transforma-se na primeira camada horizontal, fundindo-se com as outras. Os pescoços alinhados formam grutas e pelos contornos das mãos entram rasgos de sol para o interior secreto da vida geológica.

Uma derrocada corta a harmonia dos movimentos das bancadas porque um homem de pedra se recusou a subir pelo vale.
Ali corre o túnel onde se trocam humores entre a terra e o céu, como a água que corre aconchegada na ondulação calcária.

Traz consigo outros homens de pedra de outras paragens. Estátuas que subiram escadas mais altas até ao topo da montanha, que se desfez, e cujos destroços a água trouxe para verem o mar.

No topo da arriba sucedem-se paralelas esfinges.
As suas patas de leoas aventuram-se em frente, como proas a indicar um rumo. O caminho de mais rocha para erguer por batalhões de homens.
O seu rumor sente-se perto. Estarão a chegar?

Chyrimoias em Ascenção Celeste




Ichíria
baila no carrossel do astro
Clarabóia
rebola no tonel do infinito
Rambóia
saracoteia no dossel-caramelo-agreste

todas chyrimoias
em ascenção
celeste

Eurípides Pequenina




Eu ri.
E tu?
Eu? Porquê?
Do Pi.
Desde pequenina.
Ri do Pi desde pequenina.
Desde pequenina
me despi.
Me despedi.
Da Nina.
e do Pi.
Que Pi?
Do Pi que ri?
Quem? Eu?
Sim.
Tu. Ri.
Despida.
Desde pequenina.
Ri.

Chaddar




três mulheres
três sonhos
três triângulos

caladas caminham
três vidas
três redomas

seguem
sós

ritmo que anda
nos olhos que vivem
três ângulos
três linhas

paralelas
em vidas rectas
num ponto
sós

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Sonho Psicadélico




a galope do relâmpago
cai do sonho psicadélico
João Calemo de Melo

a segui-lo
em bailes eléctricos
ultravioletas
e cachos d’uvas
Maria Tartamuga Buga

só para si
inventaram
novo sonho de fusão
de textura mel-laranja
e de sabor a trovão

A Égua Atmosférica


a égua atmosférica
trota sincopada
de paixão tomada
pelos mares do céu

se andante é nuvem
se vivace é estrela

se allegro
chove
e num fio se demora

a égua atmosférica
de volúpia trota
nas crinas de veludo
que das nuvens brotam

Duas Cerejas Coradas


duas cerejas
coradas
abriram os olhos
coram
olhos nos olhos

cereja de vestido croché azul
cereja de gravata de prata

coram
olhos nos olhos
e olhos nos olhos
subitamente

cereja de vestido prata azul
cereja de gravata croché de prata

unidas, coloridas
de prata e croché vestidas
rudidançam
olhos nos olhos

duas cerejas
coradas
abriram os olhos
coram olhos nos olhos

domingo, 2 de dezembro de 2007

Silêncio é a última valsa na rua branca




Manuela chora uma vez mais. Chora como naquele fim de tarde, há quarenta anos, em que a banda deixou de tocar.

Fazia oito anos. O pai tinha-lhe prometido que no seu aniversário iria começar a aprender clarinete. Era aquele o dia. Apresentou-se com a sua roupa nova na Sociedade Filarmónica Padernense, vestido branco, meiazinha branca pelo tornozelo e sapatos de verniz preto.

Acostumada a acompanhar o seu pai, trompetista, achou estranho não ouvir aqueles sons descoordenados do aquecimento dos instrumentos que antecedem o ensaio. Na sala do solfejo não estava ninguém a estudar nem viu o Sr Andrade a marcar o compasso com a palma da mão na mesa de madeira.

Em baixo, na cave, ouvia movimentos silenciosos, lentos, pesados.
Desce. Estão lá todos, fardados a rigor. Dão brilho à tuba, ao contrabaixo, ao trombone de varas. Trocam-se as palhetas e apertam-se as chaves aos clarinetes. Aos clarinetes.

Manuela fica parada à porta a olhar o seu pai, a ver se entendia.
Preparam as estantes e a um movimento do maestro colocam-se em fila e ensaiam os passos no lugar. Tudo em silêncio.

Manuela entra no labirinto de metal e homens e aproxima-se do pai que a acolhe. Baixam-se ambos e sob o som ritmado dos pés no chão do ladrilho gasto da cave, o pai diz a Manuela:
- Hoje é o último dia em que a banda vai tocar. Não te disse, desculpa.Não vais poder aprender clarinete.

Por isso Manuela chorou em silêncio. Chorou enquanto seguia os músicos na sua última valsa pelas ruas brancas de Paderne.

Paderne sentia-se triste e na tristeza não havia lugar para a música.
Com os seus filhos em guerra no ultramar português, Paderne resolveu que a banda não voltaria a tocar enquanto todos eles não voltassem sãos e salvos. Nem todos regressaram. A banda não voltou a tocar. Manuela não aprendeu música. E por isso ainda hoje chora.

Harmonia é o crepitar da lenha no forno do pão



Toda a vida o Sr José António Varejo, chegado o Inverno, calcorreia as encostas da serra de Monchique para apanhar medronho. Tem os frutos dentro de um barril, primeiro vermelhos, depois cada vez mais pálidos conforme o tempo passa e a fermentação se acentua.

Nos dias de nevoeiro, quando os montes desaparecem dentro das nuvens empurradas pelo vento sueste, sobe ao sobrado da casa de taipa, desce o velho alambique do avô Jeremias Barbeiro, ateia o fogo de sobro e destila. O vapor passa na serpentina arrefecida pela água do grande tanque. Do fundo soltam-se sons de pingos a cair: é a aguardente a nascer.
A harmonia é o líquido transparente, coado, que enche devagar as garrafas de vidro sobre a banca.

Jacinta do Carmo, Varejo pelo casamento, coze pão de lenha. Tem um forno em pedra à entrada da sua casa e amassa numa bacia baixa de barro. De tanto torcer a massa, alisá-la, puxá-la ao centro, já são os braços sozinhos que se entendem com a farinha e o fermento. E também com o sal e a água, tal como quando o vento revolve as ondas no mar lá ao longe.
A harmonia é o crepitar da lenha sob o tecto curvo e negro do forno do pão.

Entre o medronho dele e o pão dela, o atado de chouriças que ela faz do porco criado por ambos, a dúzia diária de ovos das galinhas pedrês, o braçado de hortaliças e os cestos de fruta que vendem no mercado, compõem a economia familiar. Os Varejo subsistem sozinhos, são o que resta de uma comunidade de onze famílias da aldeia do Brejo.

Até que um dia apareceram senhores desconhecidos a bater à porta. Eram da Inspecção.
Foram dizendo que o alambique tinha chumbo e que todo o equipamento da destilaria e do forno deveria ser substituído por aço inox, ao que o Sr José António respondeu que nunca tinha ouvido falar de tais procedimentos, nem percebia muito bem o que fazia mal à saúde, se estava todo limpinho. Sempre tinha visto fazer assim.

Os tais senhores confiscaram 100 garrafas de medronho ao Sr José.
Os tais senhores selaram o forno à Dona Jacinta.
A interioridade é um forno sem lenha.
A desertificação é uma serra vermelha de bagas de medronho por apanhar.

Doçura é uma colecção de silêncios



A doçura é a moeda que tenho sobre o capot do meu "Dois Cavalos" vermelho.

Saio da Biblioteca e dirijo-me para o carro. O menino negro surge, não sei de onde, e diz:
- Dá-me uma moeda ou parto-te o carro à pedrada.
Invadem-me sentimentos vindos de todos os quadrantes. A doçura é um frasco vazio e sem tampa.

Que belo é! Parece ter sete ou oito anos, porém já com o olhar duro de um adolescente revoltado. Coça a carapinha e tem brilhos rápidos nos olhos.
-Eu não te fiz mal para me ameaçares e não tenho dinheiro para ti.
-Dá-me uma moeda ou parto-te o carro...
-Já te disse que sou pobre.

Lento, o meu companheiro aproxima-se de mim; sinto o seu calor, o aveludado da sua pele.Os seus olhos são rajadas de injustiças.
Está mais alto porque eleva e empurra para trás os ombros e puxa a cabeça hirta para a frente.
-És rica. Tens um casaco de pele... E tens este carro. Quanto vale este carro?
-É barato. Foi a minha mãe que mo deu; está velho, vês?
E rodámos, com a minha mão e a dele juntas, o espelho retrovisor, desaparafusado.
Doçura é uma colecção de silêncios.

-Olha, digo eu, nasci em Angola...
-Tu deves ser cigana, com essa saia...
E acaricia a minha saia de lã vermelha, com pregas.
-Porque não vais à escola?
-As escolas são dos ricos.
Agora o meu menino tem no olhar a doçura de um quadro negro onde começam a raiar riscos multicolores.

Quando, por fim, lhe estendo a moeda, olha-me fixamente nos olhos:
- Eu sou teu amigo.
Pega nela e coloca-a sobre o capot do meu "Dois Cavalos" vermelho.
Pisca-me o olho e dirige-se para outro carro que acaba de estacionar.

sábado, 1 de dezembro de 2007

Três Cores Cardeais


Cai a noite.
Descansam os líquidos
nos tubos desiguais;
reagentes ressonam
sonham garrafas
dormem cristais.

Surge a lua
amiga de surpresas…
e em crescente cabala
tira a gravidade…
da sala!

De leve em leve
voam espátulas,
vagueiam aventais
sobem tesouras
termómetros
caixinhas de sais.

E sobre a velha bancada
estão já a flutuar
a pipeta verde – chupeta
o balão cobalto – azulão
e a balonesa coral – violeta.

Suspensos,
pipeta, balão e balonesa
giram e revolteiam,
lançando em espiral
uma a uma,
cada gota cardeal!

da saia da balonesa
saem gotas púrpura,
de granada debruadas;

da barriga do balão
caem pingas celestes,
de incensos enfeitiçadas;

do turbante da pipeta
deslizam pingos esmeralda
de matizadas lavas…

No laboratório Íris Irreal
criaram-se hoje
três cores cardeais:
verde - norte – chupeta
cobalto - oeste – azulão
violeta - leste – coral.

Buzinverso Unilaranja



O Senhor Cônsul Mindo Mais-e-Mais
cinzento e direito chega a Carvalhais
na sua nave unipessoal.
Entra no Andanças
... e buzinopé que buzinopé,
metamorfose abrupta o transformou...
em Zé ReduziZé ReduziZé.

Vai em busca do Beijo do Vento
a patinar de Ovos Esmeralda.
Com Seriluas Triluche
e Estrelâncias Ourinémonas
velivolam pelo atrimundo!

Algodões Puros dançam Mazurcas
num frenesi estratosférico!
Peixes das profundezas assistem,
comovidos, ao Cinema Paraíso.
Totemrugas – Dólmen buscam par,
e Dona Virgolina convida
pretendentes envergonhados
para dançar.

Três Talac-Nhocas
fazem o trilho do mistério;
três Sirimpintis,
em pose derretida,
namoram de bicicleta e mochila;
quatro Teclas de Piano
fogem numa Flauta-do-Mar.

Perdigotos Saltimbancos
do Rino – Carrocel
acampam com chapelloises
de gaitas-de-foles
e escudos de abóbora.

Fogem dois pensamentos do Barnabé
minutos antes de três Caracóis – Nacarados
alcançarem três Búzios – Beijinhos
na corrida da baixa – mar.

Um Espadachim Lunar
protege a Lualuz
(é ela que guarda

nas danças e nas músicas
os segredos dos povos).

No fim, o concerto das Tartalágrimas.

Zé saiu de Carvalhais.
Mas já não ia cinzento e direito,
ia buzinverso e unilaranja.
Agora era o

Zé ReduziZé Mais-e-Mais.

Não foi de nave, foi a pé,
que é multipessoal,
e com ele, as Talac – Lâncias,
as Sirim – Nhocas, as Pinrugas,
e o Espadachim Lunar!

E começou a nascer
a Lualuz,
lá fora,
no ConsuMundo.

Siringundonastro Perineu


Sírius brilhou no astro
Íris levantou o véu
irrompeu o ilhéu ametista…
… Siringundonastro Perineu
nasceu.

Totem de Tartaruga - Dólmen


Era um totem
e era um dólmen.
Veio uma tartaruga
e ficou
totem de tartaruga – dólmen.

A tartaruga
ficou a dolmir,
o dólmen
a tartir, a tartir,
e o totem
a tartamudear
que assim não podia ser:
tinham de mudar.

Então a tartaruga
passou a totenrugar
e o dólmen
foi jogar dominó
com o outro totem do lugar.

Trilolindro, Trilolindro


borbolengas
triloguetas
e um rectilindro
trilolindro
trilolindro
vão visitar
a Eurípedes
pequenina

as borbolengas
levam lenga-lengas

as triloguetas
borboletas

e o rectilindro
um trilolindro

borbolengas
triloguetas
e um rectilindro
trilolindro
trilolindro
foram visitar
a Eurípedes
pequenina