sexta-feira, 6 de junho de 2008

Modelos Luminosos


Efeito Pétala

Esta apaixonou-me. Já me habituei a ela depois de alguns minutos de contemplação.
Não consigo olhar para outra.
Vinha caminhando sob o efeito folha de um sobreiro. Era uma zona cerrada de montado de sobro, tudo variáveis na mesma gama de cores. De repente surge-me esta mancha de cor, não percebi o que era.
Só depois ccmpreendi que era uma orquídea. O efeito pétala.
Uma clara orquídea linda violeta, com risquinhas e não pintinhas pretas nas folhas.
Fiquei-me assim, embasbacado. Toma conta de mim um embevecimento tal… e desato a namorar. Parado, muito quieto. É sempre assim com os modelos antes de pintá-los. Puro estado de paixão.
Quero entender-lhe os padrões. E quando acabo de fazer o desenho, é minha. Sinto que está acabado quando a tenho cá dentro.
E quando já a tenho levo-a comigo.
O modelo fica cá mas eu levo a orquídea.
Desenho, e vejo e oiço mais longe.


Ai o sal!

Sempre que penso em fazer um certo motivo surge logo outra coisa qualquer pela qual me apaixono e faço-a. Não consigo fazer nada contrariado.
Disse que ia fazer um sobreiro, mas depois
- Ai o Sal!
Se eu estou a fazer uma coisa contrariado não vale a pena.
É que fiz um print destas aguarelas para ver os efeitos do sal. E quero usá-lo nesta paisagem, aqui, na textura das rochas.
- Tem vindo tanto bicho e tanta porcaria aqui parar à paleta!
Bom, na verdade eu desenho mais do que pinto, porque se eu pinto tenho de fazer o desenho por baixo. Não consigo dissociar as duas coisas: desenho e pintura. Estão ligadas, gosto das duas, sinto falta das duas.
Esta é uma pintura mais solta, estou a tirar partido de uma aguarela. Assim, livre.
- Ai o sal!
Isto porque a aguarela tem um timing para secar. O stress da aguarela é conseguir ter sempre o pincel húmido para a água fluir. E agora é que ponho o sal.
O desenho é como um todo que nasce e cresce ao mesmo tempo.
Lápis e aguarela são a coerência. O sal dá-lhe profundidade (talvez maturidade?) e resulta na textura para esta rocha que procuro.


Escultura não mexe, não muda

Esta árvore foi a única coisa porque me apaixonei, assim, a nascer da rocha, assim, branca e preta. Cá está. Não tem folhas.
Prefiro formas fechadas, sem muito pormenor, não tenho paciência, quando muito para definir o contorno das copas, não para ir à forma das manchinhas. Não tenho mesmo paciência. Sobretudo se for assim, desenho rápido, não tenho.
O sítio de que eu gostei mais, onde vi mais coisas que me apetecia desenhar, foi onde produzi menos.
Quando gosto das coisas tenho de as conhecer, apropriar-me delas, e isso não é chegar, desenhar e andar. Tenho de vivê-las. O primeiro olhar é diferente do segundo, o segundo do terceiro. E não me apetece desenhar antes do décimo.
Desenho calhaus porque está sol e já não estão pardos. Metade do dia esteve cinzento, sem luz nenhuma.
Por isso é que eu gosto de escultura, não mexe, não muda.


Narcisos Luminosos

Fiz os narcisos, mas não me dei bem com os amarelos. Ficaram muito luminosos. Não têm modulação, nem volumetria.
Tenho mais facilidade em fazer desenho à vista. Deve ser por isso que desenho mais plantas. As plantinhas não vão a lado nenhum – se bem que as flores, às vezes, não páram quietas.
Eu por acaso, a desenhar, não falo. Há estudos que dizem que o raciocínio verbal é o oposto do que é usado para desenhar. Deve ser por isso.
- Olha ali um bicho!
Uns acharam que era um insecto; outros que era um gaio.
Só eu é que achei que não tive tempo para pensar o que era aquilo.
Está quase no fim do dia e a flor está cor-de-rosa – uma cistus qualquer coisa. Vou desenhá-la. Pode ser que a luz ainda chegue, e a noite, por mim, venha mais devagarinho…
Podia deixar para amanhã, mas sei que posso não encontrar uma assim de manhã, assim fechadinha.


Mais que um desenho

Eu riscava em cima de tudo o que apanhava. Onde houvesse um espaço branco, qualquer espaço branco, como o que existe nas folhas pouco escritas no início e no fim dos livros. Não podia apanhar um bocadinho de papel.
O meu sonho de infância era ter canetas de feltro de muitas cores, coisa que eu não tinha. E disto recordo-me antes de começar a desenhar, antes dos três anos. Aos cinco anos já fazia muita coisa, no infantário.
Aos quatro ficava com a minha tia que levava os meus desenhos para a vizinha ver. A vizinha era professora primária.
A única coisa que me lembro de fazer desde sempre é desenhar. Acho que nunca pintei.
Antes desenhava compulsivamente porque queria saber desenhar, levada pela frustação de querer saber mais e mais depressa, por querer ter quem me ensinasse.
Depois passou a ser o desenho não por si, mas como coisa útil, posta ao serviço de outras coisas. O desenho não é agora um fim em si mesmo e continuará a não ser.
Desenhamos mais para os outros que para nós. Desenhamos para ter um caderno cheio de desenhos. E o que resulta do acto de desenhar é muito mais que o desenho, modifica-nos, a nós e à nossa percepção do sítio.
Somos também o que o acto de desenhar imprime em nós.
O importante é o processo, não é o desenho. E essa é que é a parte fascinante.


Freixos de Pedra à Cinta

- Quero desenhar uns freixos de pedra à cinta.
Falo sozinho, sobretudo se tenho dúvidas, não sei se faça isto ou aquilo.
- Não faço mais paisagem. Deixo a rocha e o céu como se estivesse deitado no chão a olhar o horizonte.
Acordava muito cedo para desenhar. Então quando me davam coisas novas…! Acordava e ia desenhar para o chão com as canetas, lápis de cor, de cera…
E isto acontecia mesmo antes dos cinco anos, mas desses momentos não tenho memória. Apenas sei porque tenho desenhos mais antigos.
A minha avó ia buscar livros de animais para me adormecer. Era na Fuzeta. Ela adormecia e eu continuava a perguntar:
- E este? E este?
E cantava:
Quem são os três cavalheiros
Que fazem sombra no mar
São os três reis do Oriente
Gaspar, Belchior , Baltazar
Guiados por uma estrela
Que um anjo levava na mão…


Pr’aí tinta

Nestes líquenes amarelos pus bastante água, pr’aí tinta! É “água livre”, não estive a fazer textura. Gosto de fazer tal e qual, mas no caso concreto destes líquenes na rocha não quero perder muito tempo.
Neste caso não quero fazer tal qual. Quero fazer outros desenhos.
Ontem estava mais desconfortável que hoje, a desenhar sentado na arriba do Douro. Hoje até posso deitar-me sobre o granito redondo e macio. Hoje estou muito bem.
Nunca faço pintura abstrata. Uso a abstração que está na natureza.
O meu desenho é simples, a lápis e aguarela. Raramente pinto. O que faço é desenhar e pintar os desenhos. Não pinto, a pintura é para os pintores que pintam a sério. Isto é ilustração. Nestes casos assim, é um bocado de pintura, não estou com grande pormenor, estou a deixar que o desenho leve o seu rumo, não estou sempre a olhar para o modelo.
Nunca sei como o desenho vai ficar, leva o seu tempo, é um processo, vão acontecendo coisas, com o cérebro, com as mãos.
Comecei a desenhar antes de saber escrever. Sempre desenhei mais do que as pessoas que eu conhecia.


Espírito Tafoni

Tenho sobreiros à minha espera. Mas esta pedra dos buracos redondos… e em espiral… e pronto. Já estou agarrado. Vou ficar a namorá-la. A ela e à avelaneira.
Vem luz de todos os lados… talvez mais de cima, é difícil de perceber. Vou fazer mais claro do lado direito e mais escuro do lado da sombra. Vê-se só uma subtileza. Se ao menos eu conseguisse inventar um foco potentíssimo, seria muito diferente.
A avelaneira está a pedir cor. Não sei se fique e procure ao lado da paleta as cores a usar aqui. Para fazer certinho como me apetece ficava aqui muito tempo e há sobreiros à minha espera.
Toda a delicadeza está em cima. Esta é uma boa textura … preciso do mais liso possível…Meço o que é maior. Hum… um lápis inofensivo, mais para o duro que para o mole, para não deixar muita nuance. Lápis duro acariciando o papel, linhas muito fininhas, é preciso apanhar a sensibilidade, sem deixar marca.
Não sei quem conhece melhor este Mundo – se nós se os sistematas. Com o desenho estamos mais próximo. Mergulhamos no detalhe que nem um fuso para a identificação. Obriga-nos a estar muito perto das coisas. Faz-nos ser as coisas.
Esta fusão é espiritualidade.
Se a minha parte religiosa estivesse, era por aqui, e é por aqui que eu vou. Neste montado. Afinal, tenho sobreiros à minha espera.

Urzes Brancas


No jogo das francas matizes
de um corpo conhecido
um sopro do bosque de lódãos
tantas margens de zimbros
urzes brancas, urzes brancas.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Sapo - de - unha - negra


Nas viagens e nos locais de paragem foram muitos os animais avistados e imaginados, menos os tocados e manejados.
Vimos um Mocho Real numa Faia, pegas rabudas num campo de batatas, a toca de uma coelha esventrada por uma raposa que lhe levou os coelhinhos, duas poupas a voarem das suas tocas mal - cheirosas junto ao chão, um corço a beber na Ribeira do Mosteiro, os grifos e os seus bebés nos ninhos abruptos das fragas, os abutres do Egipto, águias e falcões às dezenas em espiral ascendente sobre a nossa cabeça no Castro de Siraguenha ….
Quem sofreu nas mãos do Marco uma tarde inteira foi uma bela lagartixa das rochas que posou com invulgar sentido de missão involuntária obrigatória. Mas quem sofreu mesmo, mesmo, mesmo, foram Crispim e Francisquinho, dois sapinhos de unha negra que se atravessaram na estrada quando estávamos a chegar ao albergue, e que foram parar directamente sobre duas mesas da nossa fria sala; numa sob os olhares atentos e perscrutadores dos Pedros e da Sara, na outra, sob a mirada intensa e indagadora da Nádia e o Marco. A Sandra rodopiava de mesa em mesa a conter o ímpeto de acabar com aquele sofrimento de modelos à força e devolvê-los à proveniência. O Marcos assistia de longe, imune à atracção anfíbia. Assim foi o diálogo:

- O bicho está stressado!
- É um modelo vivo em movimento.
- Movimento em modelo vivo.
- Isso.
- Só mais um bocadinho…
- … em nome da ciência ou da arte, já não sei bem!
- Então qual é o nome deste?
- Sapo de unha preta?
- É o Crispim.
- Nunca tinha agarrado um!
- Nunca tinhas agarrado um Crispim?
- Um Crispim não. Só um Francisquinho.
- O nosso é o Francisquinho.
- Esse é de BD.
- Pelobates cultribes.
- O quê?
- Coach!!! Coach!!!Coach!!!
- Pelobates cultribes.
- É o nome dele.
- A unha é demais!
- Isso é o nome de código.
- Este sapo é um espião.
- Precisa de ir para a rua, coitado.
- Vais é comigo para Lisboa, Oh Crispim!
- Coach!!! Coach!!!Coach!!!
- Que belos músculos! Isso, estica, estica!! Que beleza!
- Fritas estas perninhas…
- Isso.. estica, faz uma forcinha!
- Segura. Assim.
- Aiiii!! – caiu no chão!!!
- Coach!! Coach!! Coach!!!
- Já o agarrei tres vezes!
- Vem cá!
- Que espectáculo, as patas do gajo!!
- Vou é fazer as patas que é giro!
- Estás a inchar… anda cá!
- Ooooooops! (salta para cima da Sandra)
- Coitadinho, está mesmo aflito!
- Não se pode fazer isto aos bichos!!
- Espera aí, vamos colocá-lo dentro deste envelope. Tira-se a bússola – o João já não vem, não é? - assim fica mais calmo.
- Deixa-te estar aí sossegadinho…
- Bem me parecia que ele não aguentava muito tempo assim…
- Fiz mais rápido…
- Estavas a pressentir que ele ia saltar…
- Ele ia ali, tu é que não percebeste.
- Coach!!! Coach!!!
- Parece uma vaca!
- Está assustadíssimo.
- Isto já é grasnar…
- Ó Marcos, não desenhas o sapo?
- Eu é mais bolos.
- Pupino…
- Coubes… de Bruxelas…
- Feijão brumelho…
- Coach!!! Coach!!!
- O gajo está mesmo stressado!
- O príncipe…
- Ele precisa de água….
- Vou levá-lo. Acabou a tortura.
- Puseste – lhe água em cima?
- Pus, no canteiro….

(à entrada do albergue, todos)
- Assim, os dois, perto.
- Estava com saudades do amiguinho.
- Na estrada estavam a 5 m um do outrro.
- Olha como ele se enterra..
- E este também…
- Que rápido..
- Usa a unha como elevador…
- Neste caso como descedor..
- Isso…
- Já fizemos sapos, abutres, aves…
- Pupinos…
- Já viste o fractal?
-… alfavaca …
- Ah! A folha de feto!
- Repete-se a estrutura dentro da outra.
- … feijão bromelho…
- A aragem é uma boa aragem, mas não havia necessidade de ser tão fria….
- … pimentos…
- … pupinos …
- Tentámos encontrar, p’ra desenhar, um.. um..
- … um predador do silúrico?
- Uma vez o cenozóco encontrou-se com o holocénico e foram visitar o fanerozóico que estava muito sozinho… até que caiu um meteorito…
- … coitado!
- Do meteorito?
- … feijão bromelho…
- Tu grifalhas?
- Ai não grifalho não senhor, não grifalho não senhor!
- Ai grifalhas, ai grifalhas!
- Ai não grifalho, não grifalho!
- E tu? Reverberas?
- Ai não reverbero, não reverbero!
- Então assarapantas?
- Ai não assarapanto, não assarapanto!
- Eu binoculo.
- Chá?
- Sim! Chá!
- Vamos!
- O Chá aquece o esófago …
- … e depois passa para a alma …
- … que está entre o esófago e as costas.
- Isso.

Terras de Quartzo - Azeitona


I

À Oliveira – Mãe
semente – magma
forjada dentro da terra
recozida, ao sol, à geada.

Tronco - mapa do vale
cada nó um remoinho de rostos
suor dos homens
em terras de quartzo azeitona.

Líquenes gema - d’ovo
dão à oliveira – mãe – amada
um perfume de sedas
uma escultura de renovo.

Derrama troncos
de contornos seguros, imortais.
A Oliveira seduz o tempo.
Nela habitam
deuses e deusas minerais.



À Fraga
magma – semente
forjada dentro da terra
moldada pela vida e pelo vento.

No seio da Fraga, o vale,
memória de planícies abissais,
prepara leitos fofos para a água doce
como para os oceanos primordiais.

Líquenes fractais criam nas fragas
olhares mostarda, pinceladas rituais.

Às lágrimas em corredoiro
aconchega-as num só rio
meandros mosteiro das gentes
cravados sulcos do estio.



E da azeitona - quartzo
dos seus corpos rocha – azeite
inventaram os homens
de luz e água
deleite.

Em cada dia uma célula mais
um mineral mais.
Um mineral que é uma célula mais
em cada dia.

Como nos aljezures:
a oliveira não vive sem os muros de pedra.
Cairia.


II

Fraga e Oliveira concedem
ainda hoje, e sempre,
passagem ao ribeiro,
e a quem queira.

À amêndoa, ao zambulho e à rondadeira.
À ovelha churra da terra quente.
Ao pica-pau e ao chapim,
ao corço e ao javali.
À cobra – cabeluda.
E à papalva farfalhuda.

De musgos se afofam,
pedra e tronco,
preparam-se e convidam a ficar.
Nos altos penedos, a águia real
os grifos, gralhas, o pombo – torcaz
no topo das copas, rolas, tordos;
na base, os lagartos, a doninha,
a marta – fuinha,
o rato, o gato – bravo, o texugo
a raposa, o lobo…
e as carochinhas.