Há muito, muito tempo atrás, um almocreve seguia a pé com a sua mula carregada de todo o sal que conseguia para trocar por azeite e cânhamo em Barca D’Alva. Um caminho duro, a pique, entre as arribas do Douro, mas que de tantas vezes o fazer o almocreve já conhecia barrancos e precipícios de olhos fechados.
Só que esse dia, que até ali de sol, começa a tomar-se de nuvens, primeiro cinzentas, depois negras como breu. O almocreve apressa o andar, não queria de maneira nenhuma ficar encurralado pela tempestade, e logo no pior lugar: o desfiladeiro da Ribeira do Mosteiro. Sítio medonho mesmo com luz, sem ela era ninho dos trovões.
Por isso, seguia atentamente pela margem, donde via a ribeira a engrossar a cada minuto. Sabia que se não conseguisse encontrar um local para atravessar aquele tumulto - torrente para o outro lado, corria o risco de um encontro com o Eremita do Brita, que atirava cobras cabeludas e lagartos voadores a quem se atrevesse passar por ali.
Apesar de ter aligeirado o passo, tanto quanto os caminhos exíguos entre as escarpas o permitiam, fez-se noite e o assobiar do vento e a maré – alta da chuva impediram o almocreve de dar mais um passo que fosse. A ribeira derramava-se que se perdia.
Aninhado com a mula sob um enorme penedo redondo na curva da ribeira, eram fustigados por rajadas e bátegas em fúria. Todo o vale era um rio e o esforço agora era para não se deixarem levar pela força da corrente. Todo o carrego de sal já se diluira na água que corria salgada como um mar.
O almocreve já duvidava que conseguisse sair daquele inferno vivo. Os relâmpagos faziam ricochete nos quartzitos e cada cintilar de luz uma labareda que ecoava nas fragas.
Louco de pavor gritou:
- Que me acuda Deus ou o Diabo!
E apareceu-lhe o Diabo.
Negociaram debaixo das águas imparáveis: se o Diabo conseguisse fazer uma ponte e uma calçada que permitisse ao almocreve atravessar para a outra margem até ao planalto, o Diabo ficaria com a sua alma. Mas só se a calçada ficasse totalmente acabada antes do galo cantar três vezes. Foi este o trato.
Em menos de um relâmpago o Diabo ecoou um trovão medonho que fez ribombar milhões de anos de fraguedos vertiginosos. Estremeceu a terra e aquelas formas dos penedos que ao cair da tarde acentuam as nossas certezas sobre tratarem-se de seres bizarros e grotescos, assumiram vida. Sairam do seu lugar na paisagem e vieram ajudar o Diabo a fazer a calçada.
Rocha a calcetar rocha com os punhos; rocha em movimento a transportar rocha numa visão entrecortada por bailes-fumaça de nuvens. Relâmpagos de sangue a ciclonar enraivecidos.
O almocreve e a sua mula ficaram expostos de todos os quadrantes, depois da rocha que os abrigava se ter transformado em gnomo-canteiro, um amontoado de borbotões de xisto a partir pedra, com um queixo enorme e um só olho de quartzo.
Uma azáfama infernal de forja fumegante tomou conta do lugar. E o dia clareou ao 1º cantar do galo. O galo cantou apenas uma vez.
Durante toda a manhã, toda a tempestade, o Diabo e os seus ajudantes construiam a calçada, que surgia fabulosa, com dezoito lancetes de lages de quartzito finamente trabalhadas. Ao meio-dia ouviu-se segundo cantar do galo. Duas vezes o segundo galo cantou.
O diabo urrou com os olhos a derreterem-se em veias, e elfos, fantasmas e gnomos de pedra aumentaram o ritmo do trabalho. E arrepiaram desvairados sons à sua cantilena arrítmica.
Uma longa fila de criaturas endemoninhadas passava de mão em mão pedregulhos a começar no vale e a seguir pela encosta até ao topo. O nevoeiro e a lama só por segundos permitiam descortinar a extrema exactidão do trabalho. O lugar onde muitos se amontoavam deixava saber da evolução da calçada. Era como se em cada minuto uma nova montanha se formasse.
Ao cair da tarde, o emaranhado de diabos de rocha viva estava concentrado no Castro de São Paulito. Bruxas litológicas dançavam estridentes. Anunciavam o fim da Calçada. Rejubilavam por mais uma alma.
O Almocreve e a sua mula tinham caminhado até junto deles, tinham atravessado a ponte e inaugurado a calçada perfeita.
- O fim da minha alma – pensou o Almocreve.
Mas eis que o terceiro galo cantou! E cantou uma, duas, três vezes. Três vezes! E um urro medonho, o mais medonho, ecoou, estremeceu o mundo!
O almocreve foi a correr, ficou ao lado do Diabo: à sua frente, no termo da calçada, estava o Gnomo do Olho de Quartzo, imóvel, com um bloco de quartzito na mão. Para estar concluída, a calçada precisava desta peça, que completava o travamento. Mas o galo cantou antes.
O Almocreve e a sua mula passaram para o planalto. Não levavam o sal. O Almocreve levava a sua alma.
E antes de cair a noite, todos os acólitos do diabo, viajantes - cavaleiros que perderam a alma, incorporaram novamente o seu lugar em forma de penedo. São as figuras das fragas. Só o diabo desapareceu engolido por uma bocarra que se abriu e logo se fechou entre os penhascos do Muro da Abalona.
Só que esse dia, que até ali de sol, começa a tomar-se de nuvens, primeiro cinzentas, depois negras como breu. O almocreve apressa o andar, não queria de maneira nenhuma ficar encurralado pela tempestade, e logo no pior lugar: o desfiladeiro da Ribeira do Mosteiro. Sítio medonho mesmo com luz, sem ela era ninho dos trovões.
Por isso, seguia atentamente pela margem, donde via a ribeira a engrossar a cada minuto. Sabia que se não conseguisse encontrar um local para atravessar aquele tumulto - torrente para o outro lado, corria o risco de um encontro com o Eremita do Brita, que atirava cobras cabeludas e lagartos voadores a quem se atrevesse passar por ali.
Apesar de ter aligeirado o passo, tanto quanto os caminhos exíguos entre as escarpas o permitiam, fez-se noite e o assobiar do vento e a maré – alta da chuva impediram o almocreve de dar mais um passo que fosse. A ribeira derramava-se que se perdia.
Aninhado com a mula sob um enorme penedo redondo na curva da ribeira, eram fustigados por rajadas e bátegas em fúria. Todo o vale era um rio e o esforço agora era para não se deixarem levar pela força da corrente. Todo o carrego de sal já se diluira na água que corria salgada como um mar.
O almocreve já duvidava que conseguisse sair daquele inferno vivo. Os relâmpagos faziam ricochete nos quartzitos e cada cintilar de luz uma labareda que ecoava nas fragas.
Louco de pavor gritou:
- Que me acuda Deus ou o Diabo!
E apareceu-lhe o Diabo.
Negociaram debaixo das águas imparáveis: se o Diabo conseguisse fazer uma ponte e uma calçada que permitisse ao almocreve atravessar para a outra margem até ao planalto, o Diabo ficaria com a sua alma. Mas só se a calçada ficasse totalmente acabada antes do galo cantar três vezes. Foi este o trato.
Em menos de um relâmpago o Diabo ecoou um trovão medonho que fez ribombar milhões de anos de fraguedos vertiginosos. Estremeceu a terra e aquelas formas dos penedos que ao cair da tarde acentuam as nossas certezas sobre tratarem-se de seres bizarros e grotescos, assumiram vida. Sairam do seu lugar na paisagem e vieram ajudar o Diabo a fazer a calçada.
Rocha a calcetar rocha com os punhos; rocha em movimento a transportar rocha numa visão entrecortada por bailes-fumaça de nuvens. Relâmpagos de sangue a ciclonar enraivecidos.
O almocreve e a sua mula ficaram expostos de todos os quadrantes, depois da rocha que os abrigava se ter transformado em gnomo-canteiro, um amontoado de borbotões de xisto a partir pedra, com um queixo enorme e um só olho de quartzo.
Uma azáfama infernal de forja fumegante tomou conta do lugar. E o dia clareou ao 1º cantar do galo. O galo cantou apenas uma vez.
Durante toda a manhã, toda a tempestade, o Diabo e os seus ajudantes construiam a calçada, que surgia fabulosa, com dezoito lancetes de lages de quartzito finamente trabalhadas. Ao meio-dia ouviu-se segundo cantar do galo. Duas vezes o segundo galo cantou.
O diabo urrou com os olhos a derreterem-se em veias, e elfos, fantasmas e gnomos de pedra aumentaram o ritmo do trabalho. E arrepiaram desvairados sons à sua cantilena arrítmica.
Uma longa fila de criaturas endemoninhadas passava de mão em mão pedregulhos a começar no vale e a seguir pela encosta até ao topo. O nevoeiro e a lama só por segundos permitiam descortinar a extrema exactidão do trabalho. O lugar onde muitos se amontoavam deixava saber da evolução da calçada. Era como se em cada minuto uma nova montanha se formasse.
Ao cair da tarde, o emaranhado de diabos de rocha viva estava concentrado no Castro de São Paulito. Bruxas litológicas dançavam estridentes. Anunciavam o fim da Calçada. Rejubilavam por mais uma alma.
O Almocreve e a sua mula tinham caminhado até junto deles, tinham atravessado a ponte e inaugurado a calçada perfeita.
- O fim da minha alma – pensou o Almocreve.
Mas eis que o terceiro galo cantou! E cantou uma, duas, três vezes. Três vezes! E um urro medonho, o mais medonho, ecoou, estremeceu o mundo!
O almocreve foi a correr, ficou ao lado do Diabo: à sua frente, no termo da calçada, estava o Gnomo do Olho de Quartzo, imóvel, com um bloco de quartzito na mão. Para estar concluída, a calçada precisava desta peça, que completava o travamento. Mas o galo cantou antes.
O Almocreve e a sua mula passaram para o planalto. Não levavam o sal. O Almocreve levava a sua alma.
E antes de cair a noite, todos os acólitos do diabo, viajantes - cavaleiros que perderam a alma, incorporaram novamente o seu lugar em forma de penedo. São as figuras das fragas. Só o diabo desapareceu engolido por uma bocarra que se abriu e logo se fechou entre os penhascos do Muro da Abalona.
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