domingo, 2 de dezembro de 2007

Silêncio é a última valsa na rua branca




Manuela chora uma vez mais. Chora como naquele fim de tarde, há quarenta anos, em que a banda deixou de tocar.

Fazia oito anos. O pai tinha-lhe prometido que no seu aniversário iria começar a aprender clarinete. Era aquele o dia. Apresentou-se com a sua roupa nova na Sociedade Filarmónica Padernense, vestido branco, meiazinha branca pelo tornozelo e sapatos de verniz preto.

Acostumada a acompanhar o seu pai, trompetista, achou estranho não ouvir aqueles sons descoordenados do aquecimento dos instrumentos que antecedem o ensaio. Na sala do solfejo não estava ninguém a estudar nem viu o Sr Andrade a marcar o compasso com a palma da mão na mesa de madeira.

Em baixo, na cave, ouvia movimentos silenciosos, lentos, pesados.
Desce. Estão lá todos, fardados a rigor. Dão brilho à tuba, ao contrabaixo, ao trombone de varas. Trocam-se as palhetas e apertam-se as chaves aos clarinetes. Aos clarinetes.

Manuela fica parada à porta a olhar o seu pai, a ver se entendia.
Preparam as estantes e a um movimento do maestro colocam-se em fila e ensaiam os passos no lugar. Tudo em silêncio.

Manuela entra no labirinto de metal e homens e aproxima-se do pai que a acolhe. Baixam-se ambos e sob o som ritmado dos pés no chão do ladrilho gasto da cave, o pai diz a Manuela:
- Hoje é o último dia em que a banda vai tocar. Não te disse, desculpa.Não vais poder aprender clarinete.

Por isso Manuela chorou em silêncio. Chorou enquanto seguia os músicos na sua última valsa pelas ruas brancas de Paderne.

Paderne sentia-se triste e na tristeza não havia lugar para a música.
Com os seus filhos em guerra no ultramar português, Paderne resolveu que a banda não voltaria a tocar enquanto todos eles não voltassem sãos e salvos. Nem todos regressaram. A banda não voltou a tocar. Manuela não aprendeu música. E por isso ainda hoje chora.

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