segunda-feira, 21 de julho de 2008

Concerto em Bota - Trombone Menor



Chegou a Bota.
Entra no camarim.
Soçobra em atavios,
cordões, molas
atacadores,
sarja, seda, cetim.

Sala cheia.
Rouquidões.
Na primeira fila
o Trompete dos Dois Corações.
Sinos suspendem sorrisos.
Aprumados os violinos.

Já chegou a bota!
- disse um flautim.
Mas onde está o Trombone?
em uníssono
pianíssimo
a audiência conspira:

Esta Bota
de bigodes - de – fuinha
tocará pratos
incorporados?
E será que brilha
o megafone do Trombone?...

Eis que chega o Trombone!
Entra convicto
das suas chaves – duplas
jade – reluzentes,
do seu salto alto “supertone”.

Atenções ao palco!
De um lado a Bota esguia,
do outro
o Trombone cheio de cor!
Vai começar
o concerto – fusão
em Bota – Trombone Menor!

domingo, 20 de julho de 2008

Via Láctea Abandona o seu Enxame de Galáxias




Via Láctea tem mau feitio.
Não suporta que as outras galáxias
lhe apontem o dedo a dizer:
“Não tem vergonha,
derramou o leite outra vez”.

E amua.

Mas hoje foi a última vez.

Hoje é o dia
em que a Via Láctea
abandona o seu enxame de galáxias.

O Maior Puzzle do Mundo


O Mago P.M.C. Zóico mora no fundo do mar e adora formar puzzles. Até a casa onde mora é feita de pedaços de rocha que ele encaixou umas nas outras.
Há já uns dias que tem andado a matutar numa ideia: construir o maior puzzle do mundo com os dois super – continentes do Reino Paleo. Por isso pediu à Medusa Xis que usasse os seus sinais fosforescentes para convocar todos os habitantes das profundezas.

De todos os quadrantes oceânicos começaram logo a chegar tidões rolantes de criaturas bizaráticas com os olhos fixiriosos no Mago P.M.C. Zóico.
As trilobites abriram alas e o Mago disse:
- Caros amigos: vou fazer o maior puzzle do mundo.
As medusas perguntaram desconfiadas:
– Como vais fazer isso? E olharam-no tão próximo, que o Mago Zóico sentiu o movimento subtil da água que formava o seu corpo transparente.
- Com a ajuda do Nuteixo, vou juntar Laurásia e Gondwana num único super - continente.
Os crinóides sentiram um arrepio enorme de tiritedo.
– Assim o mar entre Laurásia e Gondwana desaparece… E depois para onde vamos viver?

Mas o Mago não respondeu, estava concentrado na magia (tinha substituído a varinha mágica por um moderno Nuteixo e ainda não dominava muito bem a técnica). Activou a âncora – mágica dando-lhe brilho com algas – vermelhas e ia dizer as palavras encantadas. Esbracejou profusamente, abriu a boca … mas não saiu som. Esquecera-se da fórmula.

Entretanto, já os animais se retiravam, num grande burburinho, a pensar quais as mudanças necessárias para o caso da magia resultar e deixarem de viver dentro de água.
Sozinho, o Mago Zóico voltou a pegar no Nuteixo, elevou a cabeça, e com movimentos redondos no ar, improvisou e disse:

- Oh Nuteixo giganbolante!
cria um puzzle gigante,
dobra as rochas
como papeis empilhados,
aproxima os continentes
sem ficarmos esmagados!

Assim que acaba de proferir estas palavras, há um tremor de terra acompanhado de um rugido cavernoso. Só por sorte é que Dona Grauva Bites não ficou emparedada pelas rochas às listas x e g da sua casa!

Os animais desataram num corrupio, perdidos, para a frente e para trás:
- Socorro! Vem aí o fim da Era! Vai acabar o mundo!
O Mago, atrapalhado de todo, só pensava:
– Mas onde foi que eu me enganei??!!

E enquanto ribombavam terramotos sob os seus pés, disse as palavras mágicas ao contrário para anular o feitiço:

- sodagamse somracif mes
setnenitnoc so amixorpa
sodalhipme isepap omoc
sachor sa arbod
etnagig elzzup mu airc
etnalobnagig Oxietun ó

Mas a rocha continuava a partir-se.
Nisto, chega da superfície uma goniatite – mensageira:
- Os continentes estão a aproximar-se muito depressa. Salve-se quem puder!
O Mago estava desesperado. Resolveu ter calma e sentar-se a olhar para o Nuteixo. Mas teve de se levantar porque ficou com o rabo a arder! Que calor impressionante! E olhou para a rocha onde se tinha sentado: parecia plasticina, estava a dobrar devagar. Mas de repente ouve um crrack e… partiu-se em mil bocadinhos.

Foi quando o Mago percebeu: se as rochas do fundo do mar fossem empurradas com calma, podiam dobrar, em vez de se partirem todas! A magia estava a acontecer muito depressa....

Teria de retardar o tempo! Nada mais fácil para quem tem um Nuteixo. E desenhou no ar vários oitos ao contrário… o sinal esperado pelo Nuteixo para dilatar o tempo. Então a âncora - mágica vaidosou-se e encheu-se de ilumintensas cores enquanto tornava lentilongos os dias e os anos.

A partir daquele momento Laurásia e Gondwana começaram a progredir muito devagar na sua rota de colisão. Enrugaram o fundo do mar até que se juntaram. Agora só havia um único continente. O puzzle estava concluído.

Porém, mesmo depois de unidos, continuaram a avançar um em direcção ao outro, dobrando-se e subindo em múltiplas curvas. Foi assim que nasceu uma Montanha como uma enorme cicatriz enrugada. Cada dia mais alta, cada dia mais alta…até que Laurásia e Gondwana pararam.

O Mago caminhou muito tempo pelo continente único, rodeado de mar e atravessado a meio pela Montanha mais alta de todos os tempos. À montanha chamou Hercínica. Ao continente chamou Pangea, o seu mais belo puzzle.

sábado, 19 de julho de 2008

O Bailado do Talude


Dona Grauva Bites e as irmãs são trilobites-bailarinas dos mares do sul. Juntam-se às poeiras finas na sua descida até ao fundo do mar e com elas assumem formas de criaturas ondulásticas na Dança das Bailarinas Mutantes. Todos os animais do oceano assistem a esta dança sentados ou suspensos nas águas: é o momento mais alto das festas no reino Paleo.

Entre a assistência do espectáculo de hoje está um convidado de honra: o Mago PMC Zóico. Uma comissão dos animais das profundezas, liderada pela Dona Grauva, chamou-o para os ajudar a resolver o problema das águas turvas.

Na verdade, as condições de visibilidade da dança são muito más. Todo o chão é de pó e basta um movimento para não se ver nada, tal é o barrento das águas. E como se não fosse suficiente, há dias em que a representação é interrompida a meio quando, sobre todos, assistência e dançarinas, o talude lança, de uma assentada, serpentes gordas de areia (o talude é um plano inclinado que liga o continente às planícies abissais; chega uma altura em que a terra que os rios lhe enviaram da superfície é tanta que escorrega e cai).

Aí tudo pára. Os espectadores ficam em croquete e saem para se sacudirem. A água fica tão escurecida que não se consegue ver um palmo à frente do nariz. Durante esse tempo não há bailado e todo o oceano fica triste.

No final do espectáculo, enquanto se sacudiam, a Dona Grauva pediu ao Mago PMC Zóico:
- Gostávamos que transformasse a areia do fundo do mar em rocha dura. É a única forma de podermos continuar a fazer a Dança das Bailarinas Mutantes.

O Mago PMC Zóico respondeu que queria ajudar, mas transformar partículas soltas em rocha consolidada exige uma pressão enorme, e para isso precisamos de mais material que se sobreponha a este! E mesmo tentando com a sua nova varinha mágica, o Nuteixo, não estava seguro de conseguir.
- Mesmo assim, Dona Grauva, vou a casa buscar o Nuteixo. Faremos o que for possível…

Mas Dona Grauva estava impaciente. Não queria esperar nem mais um segundo e resolveu agir por sua conta. Se era preciso fazer pressão sobre o fundo do mar só teria de aproveitar o facto do clã Bites ser muito numeroso. E enquanto o Mago não voltava, enrolou-se em trompilobite e tocou a reunir toda a família de trilobites dos mares do sul.

Em menos de uma gota começaram a aparecer de todos os lados, grandes, pequenas, compridas, redondas, todas com muitas patas, uns grandes olhos e o corpo dividido em três conjuntos de anéis. Estavam num frenesi:
- O que é que eu faço? O que é que eu faço? O que é que eu faço?

Dona Grauva explicou-lhes que pretendia que se colocassem umas sobre as outras para fazerem peso em cima das areias e os grãos se fundirem. E assim fizeram. As trilobites estiveram arrumadas, apertadas, numa pilha que quase chegava à superfície das águas.

O Mago chegou no exacto momento em que, exaustas, as trilobites saíam desmoronando-se. Muito orgulhosa a Dona Grauva foi ver: mas as partículas estavam soltas na mesma, a pressão não tinha sido suficiente. Nada de rocha consolidada. Tricorou, envergonhada, e deu meia volta para se ir embora, de pigídeos descaídos. Foi quando o Mago lhe disse:
- Dona Grauva, não desanime! A Medusa Xis poderá ser a chave para o nosso problema. É que, quando vinha para aqui, encontrei-a à entrada do Mundo das Medusas e o Nuteixo iluminou-se… Convido-a a vir visitá-la comigo.

E foram. Entraram por uma gruta que ligava a planície abissal ao subterrâneo Mundo das Medusas. à medida que desciam por uma alga filamentosa, a rocha ficava mais consolidada, a água era cristalina e tornava-se escuro. Até que surgiu uma luz muito brilhante: era a Medusa Xis.

A Medusa acompanhou-os a um amplo salão, iluminado por milhares de medusas, a perder de vista. Dona Grauva nem queria acreditar: rocha dura por todo o lado, muito bonita, às listas, em bancadas compactas! Que visão maravilhosa, com a água limpíssima, tudo tão nítido!

A Medusa Xis explicou-lhes que o peso das poeiras e das areias depositadas no fundo do mar desde o tempo dos seus antepassados era tanto que tinha agregado os grãos nas camadas abaixo, onde elas viviam. E todo o fundo do oceano, por quilómetros e quilómetros, era assim!!!
- Dona Grauva, convido-a a fazer a dança das Bailarinas Mutantes no Mundo das Medusas. Como vê, as águas são transparentes e espaço não falta. O que me diz?
- Sim! Claro que sim! – disse Dona Grauva, desta vez tricorada de felicidade.

Ainda nesse dia as trilobites dos mares do sul foram ensaiar para o palco das rochas às risquinhas. E passado um mês foi a estreia, no Mundo das Medusas, do mais belo bailado de que há memória: dançavam cintilantes trilobites e medusas, vistas em todo o seu esplendor.

No fim do espectáculo teve lugar uma cerimónia solene: o Mago baptizou as rochas que deslumbraram todos os animais do reino Paleo e que até àquele dia só eram conhecidas pelas medusas.

À rocha mais escura, resultante das poeiras finas, de deposição lenta, o Mago veio mais tarde a chamar xisto, em honra da Medusa Xis.
À outra, resultante das areias de deposição turbulenta do talude, o Mago veio mais tarde a chamar grauvaque, em honra de Dona Grauva.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Outros Carnavais


A grande diferença entre os bailes da sociedade e os bailes do clube era os conjuntos. A direcção da sociedade recreativa fazia ponto de honra em contratar, com grande antecedência, os conjuntos musicais de maior notoriedade para animar os seus bailes. No clube preferiam-se os acordeonistas. Eram mais em conta e não cantavam em estrangeiro, modalidade que a direcção do Sport - Clube não apreciava.

Mas havia outras diferenças.
Nos bailes da sociedade só entravam os sócios, os respectivos familiares directos e os seus convidados. Nos bailes do clube entrava quem coubesse. As pessoas finas da terra não iam ao clube e na sociedade não se entrava sem fato e gravata.

Em comum o que os dois bailes tinham era que constituíam a única possibilidade de um rapaz se aproximar a menos de um metro de uma rapariga sem que por isso caísse o Carmo e a Trindade. Portanto, tudo aquilo que se tivesse de aprender em casa da arte de bem dançar era um mero pretexto para fruir essa raridade e sempre na expectativa de que um empurrão providencial de um dos outros pares em pista desse azo ao tão desejado “encontrão”. É que para os rapazes o sucesso do evento media-se em número de encontrões proporcionados. Já o insucesso media-se em função das negas, sendo certo que na sociedade uma nega era, regra geral, irrecuperável.

Vale a pena analisar porquê.
No clube, logo que o acordeão enchia o fole, as primas agarravam-se umas às outras e iam bailando para a banda dos moços que, assim incentivados, lá se iam metendo de premeio, e estava armado o baile.

Na sociedade as coisas piavam mais fino.

Todo o perímetro da sala era recheado de cadeiras de fórmica onde as donzelas, aos duos, aos trios ou aos quintetos, tomavam assento sempre e obrigatoriamente acompanhadas por elemento parental mais velho, do mesmo sexo e inquestionável respeitabilidade (exemplo: uma tia com cinco anos de viuvez).
Este anel de fogo só era interrompido em 3 pontos: o canto onde se instalava o “conjunto” e as duas portas de acesso à sala. Era por estas portas que os mancebos teriam que dar entrada, atravessando a imensa sala em toda a sua extensão, para respeitosamente, se dirigirem à tia – viúva:
- V Exa. vê inconveniente em que dance com a menina sua sobrinha?
Ora era justamente o espectro de uma nega a esta formalidade e o inevitável regresso a solo aos curros que levava a que muitas vezes o conjunto terminasse a primeira parte da sua actuação sem que o baile propriamente dito se iniciasse.

A situação era particularmente dramática nas matinés, que regra geral não eram frequentadas por casais ou por noivos. Por isso a rapaziada obrigava-se a laboriosas reflexões estratégicas de bastidores, sendo o plano de ataque mais usual a saída dos curros aos lotes, cada um com o seu alvo predeterminado.
A vantagem desta táctica é que, no meio da confusão, se tornava menos evidente o impacto individual das negas:
– Muito obrigada, mas já está comprometida.
A desvantagem era as cenas de porrada que se armavam no corredor quando dois candidatos ao mesmo alvo não se entendiam a bem.

Por estas e por outras é que os rapazes da sociedade preferiam organizar raides aos bailes dos clubes das vilas limítrofes cujos sapateiros não viam qualquer inconveniente em que as suas herdeiras volteassem muito arrumadinhas aos fatos com gravata dos ilustres visitantes.

Quem não estava para esses ajustes eram os moços da terra. Daí que a retirada dos forasteiros fosse frequentemente acompanhada por fenómenos meteorológicos de extrema raridade, como a chuva de pedras de calçada, por exemplo.

O principal aliciante do Baile de Carnaval era ver quem conseguia impingir uma “machorra” ao machão da terra. Aparelhado de mamas postiças, uma voz de falsete afinada pelos agudos da menina mais desejada da freguesia e a lição bem estudada, os melhores actores do povo eram atirados para os braços dos garanhões da vila.

Casos de grande sucesso aferiam-se pelos encontros marcados para a esquina da leitaria na tarde do enterro do entrudo onde a vítima aguardava especada até desoras para gáudio da populaça.

Eram outros carnavais! Nada que se compare ao esplendor dos nossos dias com os directos televisivos do desfile da escola de Ipanema no Sambódromo de São Paulo, o Ronaldo ao vivo em cima de um tractor no Carnaval de Sines, as meninas de Bragança em fio dental ou o programa clássico: a grande curte de ver o sol nascer (ou estaria a pôr-se?) com uma baita bezana e uma chavala (ou seria um chaval?!!!!).

domingo, 6 de julho de 2008

O Triunfo das Chatas


"Nossa Senhora da Luz" não sabia. Aguardava o futuro na alpendrada nas traseiras da casa do Sr António Vieira, na Caramujeira, entre charruas e carros de besta. Há anos que não sentia a linha de água a ondular no casco, desde que a doença tinha obrigado o Sr Vieira a entregar ao genro, o Pedro, o governo da casa.

"Nossa Senhora da Luz" pressentia. Nunca mais lhe tinham calafetado as juntas e tinha medo de ir ao fundo quando voltasse ao mar.
É verdade que os calafates desapareceram e compreende que o Pedro com tanta lida não tenha vagar para limpar, raspar e pintar de novo as suas listas vermelha, amarela e azul que já estão esbatidas e tristes.

"Nossa Senhora da Luz" recorda quando ela e as suas companheiras pareciam um arco-íris no areal. Saíam à noitinha e o mais provável era regressarem pela manhã carregadas de safias, douradinhas, salmonetes e lulas. Quisesse Deus que não tivessem de varar em Benagil com mar de fora!!...
Nesses dias ficava-se em terra.
António Vieira também era agricultor e repartia a faina da pesca com os cuidados devidos à amêndoa, à alfarroba, à uva, à azeitona e ao figo. Semeava ainda umas favas e umas ervilhas. Aos domingos ia espairecer um bocado com o Sr Francisco Correia, artesão da ucharia que, tal como ela, se acumulava agora sem uso.
Ambos limpavam cuidadosamente as algas e retocavam as cores do corpo esguio de "Nossa Senhora da Luz" para as festas da padroeira da Praia do Carvoeiro. Nesse dia cortava as águas coberta de flores e era ela que levava o andor...

Mas isso eram outros tempos. Os estaleiros de construção naval que começavam junto à Fábrica Feu e iam até à ponte de Portimão já desapareceram. "Nossa Senhora da Luz" tinha nascido ali, junto à lota, feita de um robusto tronco de pinheiro da Serra de Monchique....Só das mãos do Sr Borralho é que saíam botes de madeira tão airosos.

Um dia o Pedro trouxe a "Karina Vanesa" para dentro da alpendrada. Era uma chata de fibra.
"Nossa Senhora da Luz" ficou a saber: uma embarcação de fibra é mais leve, um homem vara-a e vira-a sozinho, limpa-se bem, tem casco duplo, é mais complicada de afundar, navega melhor.

O Pedro e a "Karina Vanesa" passaram a sair juntos todos os fins-de-semana e ela para ali ficava, cada vez se sentia mais ressequida, mais desbotada, mais empecilho.

Faz duas semanas apareceu o Pedro mais um senhor. Ouviu-os falar estrangeiro.
No sábado passado esse senhor estrangeiro voltou com um camião que a carregou a ela e ao resto. E no domingo, quando o sol nasceu, deu por si plantada no meio de um relvado! À sombra de uma palmeira importada das Canárias.

"Nossa Senhora da Luz" não sabia nem ficou a saber que há a tentação sistemática de deixar perder os saberes antigos, fruto de uma evolução lenta mas consistente com o modo de vida. Não sabia que só quando as memórias e as técnicas desaparecem completamente é que se tenta recuperar uma realidade já morta. E expô-la numa vitrine. Não sabia.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

A Proposta


Paulo Mendes é um homem feliz. Tem 28 anos e há 8 que é casado. Com a mesma mulher, Carminda. Mendes pelo casamento, não que ela quisesse, mas à última hora não ia discutir isso na frente do padre Eugénio.

Mora no interior do Algarve, no Vale das Éguas, onde ainda resistem três casais: a casa onde mora; andando 165 passos a descer pela margem da ribeira, a casa dos pais; pela esquerda, 111 passos ribeira acima, a casa dos sogros.

A azáfama é grande mas a família ajuda-se. A verdade é que as laranjas já não valem tanto, mas compras na praça é coisa que não se faz e a reforma vai dando para os velhotes se aguentarem. Os ordenados dele e da mulher juntos, do Hotel Roque Sol, dão bem para viverem.

Problemas são só os 3 332 passos que distam da sua casa ao alcatrão que o leva a ele e à mulher ao emprego. E anda para resolvê-los há mais de 12 anos.

Na verdade a questão ainda é mais antiga, do tempo em que tinha de ir à escola da Gralheira, a pé. Quando chovia, a estrada era barranco. E ele tinha que passar por cima dos valados.

Quando começou a trabalhar, comprou uma motorizada. Que não andava dentro de água nem passava por cima dos valados. Portanto o problema agravou-se. E não se resolveu quando, anos mais tarde, comprou um carro. Como se sabe, os carros também não andam por cima de valados.

Por isso, desde que faz a barba, o Paulo não deixa sossegar o presidente da junta " estou farto de andar por cima dos valados...". Mas nada.

Há tempos, durante a última campanha eleitoral para as autárquicas, apareceu em Vale das Éguas uma caravana de jipes, que, como se sabe, são carros que passam por cima de valados.

O candidato ficou entusiasmado por ver 3 famílias a viver num sítio tão afastado, com os campos bem arranjados e as casas caiadas. Paulo confirmou-lhe "somos muito felizes, mas temos um problema: os 3 332 passos da minha casa ao alcatrão".

O candidato prometeu-lhe "Eu resolvo isso assim que for eleito". E o Paulo acreditou. Porque este candidato era uma pessoa de fora, muito vista na televisão e com grande traquejo. E votou nele. Isto é, votou no arranjo da estrada, tal como a Carminda, os pais e os sogros. E o candidato foi eleito.

Paulo ficou na expectativa do início das obras. Dois meses, seis, acabou o Verão...e já não esperou mais. Foi à câmara "Quero falar com o Sr Presidente".

Paulo lá lhe foi lembrando da promessa de arranjar a estrada. O presidente teve então uma ideia genial " Se você quisesse, eu arranjava uma casa para si, aqui na cidade, e também para os seus pais e sogros". Paulo sorriu "Oh Sr Presidente! Nós não queremos mudar de sítio. Nós somos felizes ali." "Sendo assim, depois dizemos-lhe alguma coisa".

Passados 15 dias, estava o Paulo na segurança do turno da noite a folhear um jornal diário...lá estava a fotografia do presidente a dizer que "era uma prioridade da autarquia combater a interioridade através da conjugação de sinergias para incentivar os jovens a instalarem-se nos campos, nomeadamente através da requalificação das acessibilidades...".

Paulo Jorge tresleu e concluiu: "É desta!!!"
Por isso, foi com enorme expectativa que uns dias depois abriu a carta acabada de chegar da câmara. Lá dentro, juntamente com as instruções de preenchimento, vinham três conjuntos de impressos para candidatura a habitação no novo bairro social da sede do concelho, bem junto ao mar.