domingo, 17 de agosto de 2008

Com a Cabeça entre as Orelhas


“Era Setembro. Vinha o fogo. Divino.
Imprudente.
Crescia do vale, empurrado pelo vento.
Vinha para cá. Engolir vidas.
O fogo vinha acrescentar-se de nós.

(Ganha quem conhece as fraquezas do inimigo.
Ganha quem não abandona o campo de batalha.)

Limpámos a terra (nossa e dos vizinhos),
tínhamos água, muita água,
um tractor, uma bomba d'água.
E calma.

Quando veio o fogo não tinha onde lavrar,
não tinha onde comer,
e virou para o outro lado.
Nós ficámos. Nós.
As casas. As árvores. A horta.
Os animais.
Verde entre cinzas.
Entre as mortes, vidas.

Estávamos à espera dele
desde que tentou pela primeira vez.
Era Agosto.
Não chegou cá. Mas sabíamos que podia voltar.

Em Setembro estávamos preparados.
Em Setembro vencemos."

Esperava encontrar árvores e horta ardidas, a cal branca da casa maculada pela marca do fogo. Mas não. Encontrei-os num oásis verde.

À volta tudo era negro. Desolados, paus de telefone jaziam ainda suspensos dos fios.
Lama de fuligem e carvão era tudo o que os olhos abarcavam num raio de quilómetros.
Comovi-me ao chegar porque pelo caminho construíra o pior dos cenários.


Os vizinhos vieram perguntar-lhes como poderiam agradecer o facto de lhes terem salvo as sobreiras. "Limpando as terras", disseram-lhes. Quanto à mão criminosa: "O mal do fogo não é começar, é não haver condições para o podermos parar. Se as terras e as casas estivessem habitadas, o fogo não lhes pegava. Mas assim ... as balsas são como um rastilho...Os vizinhos só vêm à serra para cortar os eucaliptos ou retirar a cortiça de dez em dez anos; depois, com o dinheiro, já podem trocar de carro mas não reinvestem um euro nos terrenos."

E continuaram: "Os políticos, em vez de proclamarem o fogo como uma fatalidade criminosa, deviam combatê-lo travando o crescimento do litoral. A solução para os fogos é parar a sangria do interior. É manter abertas as escolas, os postos da EDP, as pequenas estações de correios. É manter vivas as aldeias e os montes das serras. "

Os meus amigos contaram-me que têm recebido visitas de técnicos da câmara, do Ministério do Ambiente, do Ministério da Agricultura e de outras instituições. Têm andado a fazer o levantamento dos prejuízos. Dizem que é para depois fazerem um plano de ordenamento que evite futuros fogos. Mas vêm cada um por si. Por isso é que lhes fazem sempre as mesmas perguntas.

Volto para casa. Não há mais nada para arder... Mas reparo que os eucaliptos, os medronheiros, os carvalhos, os sobreiros já estão a despontar. A natureza recompõe-se. De aqui a cinco anos, se o fogo voltar, já terá por onde arder. E na eventualidade de novo incêndio, irão, uma vez mais, chover inquéritos para apurar responsabilidades pelo insucesso no combate aos fogos. E os técnicos, nessa altura ao serviço de novas entidades com as mesmíssimas funções, voltarão ao campo para tentar perceber porque é que tão profundas remodelações orgânicas na orgânica da administração pública, não conseguiram alterar esta triste sina de Verão.


Portanto, de aqui a cinco anos, cá estaremos. Com a cabeça entre as orelhas.

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