domingo, 17 de agosto de 2008

Já não há Meninos da Rua


Conceição ganhou o respeito dos Ranhosos quando curou o Skipy da esgana.
O Skipy era o cão de um dos bandos de meninos da rua da vila. Não eram meninos da rua no sentido que hoje damos, eles tinham casas e carinho, família, comida e iam à escola. Eram meninos que brincavam nas ruas da vila.

Jogavam à bola à tardinha, na calçada envolta de paredes de cal. Por vezes a bola batia num vespeiro alojado sob as telhas e aí era vê - los fugir, não das vespas, mas da avós de negro com as vassouras em riste...

Outras vezes penduravam-se "à boleia" nos camiões que subiam a ladeira da vila. Traziam os bolsos cheios de laranjas ou de figos que apanhavam enquanto não chegava o novo transporte de retorno a casa.

Uma vez encarrapitaram-se num camião que levava pequenas figurinhas de barro para a feira e trouxeram ofertas com fartura para as mães...que os obrigaram a ir devolver às tendas dos feirantes.

Conceição continuava num desfiar de recordações, sentada comigo numa esplanada. Era irmã de um dos Ranhosos e irmã do grupo desde a altura em que alimentou a conta - gotas seis gatinhos recém - nascidos, que os meninos encontraram jogados num latão do lixo.

Um dia, a cabana dos Ranhosos, construída sobre o ramo mais robusto de uma alfarrobeira do vale fronteiro à vila, foi alvo de um ataque com laranjas e tangerinas pelo grupo rival. Preparados para a eventualidade de uma ofensiva ao seu quartel - general, os Ranhosos atraíram-nos para perto do um canal de rega, zona de laranjais, onde tinham uma enorme pilha de "munições" preparadas para a batalha campal. Conseguiram capturar os sete elementos rivais, incluindo o chefe que levou uma monumental esfrega de laranjas podres na cabeça.

No primeiro dia de um Verão, o Skipy foi apanhado pelos funcionários da câmara e aprisionado, a aguardar o abate. Nessa noite, o gangue saiu à rua e arrombou as portas do canil municipal.

A maioria destes meninos, agora homens, já não mora na vila. A vila também já não é vila, é cidade. No sítio das antigas casas térreas cresceram blocos de apartamentos e os filhos dos Ranhosos que ficaram não brincam na rua, claro.

As mães poderiam dizer que é por causa dos carros ou até que têm medo dos raptos. Mas a verdade, diz Conceição, "é que os meninos não brincam nem na rua nem em casa porque não têm tempo. Antes mesmo de serem desmamados já viajam todos os dias a caminho do infantário ou de algum dos muitos "armazéns" de meninos que cuidam deles enquanto os Ranhosos e as suas legítimas se dedicam a cumprir os horários do emprego. Depois vem a escola. E com a escola as OTL, isto é, a fórmula institucional para guardar os meninos mais umas horas enquanto os Ranhosos não voltam dos empregos." É que, continua Conceição, "convém recordar, também já não há avós de negro. Também por isso se criaram actividades complementares para os sábados, dias em que os Ranhosos aproveitam para fazer uns biscates por fora para compor o orçamento, ou para ir à pesca (porque o domingo é dia de caça) enquanto as esposas se dedicam a dar um jeito à casa e a rever as telenovelas da semana. São as aulas de computadores, os ateliers de dança ou aulas de natação na piscina municipal...tudo isto é muito bom, mas não sobra tempo para brincar."

Conceição sente falta de ouvir a gritaria dos fins de tarde quando cada mãe chamava o seu filho do meio da rua, o mais alto que podia, para ele vir jantar. Mas isso era quando não havia telemóveis. Quando havia tempo para ser menino.

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