domingo, 17 de agosto de 2008

Menino Jesus Boneca


Maria Rosa comia castanhas cruas, mas a mãe não gostava porque fazia criar piolhos na cabeça. Jogava às escondidas para roubar uma mão cheia da mala da cozinha sem ninguém ver. Os frutos dos castanheiros que rodeavam a casa tornavam-se mais saborosos depois de colocados dentro da arca que o avô fizera.

Estaladiças, duras, frescas, cruas. Coziam-nas com erva - doce ou com arroz para o jantar; eram fritas em banha ou piladas e guisadas com feijão, mas cruas é que Maria Rosa gostava.

Duas borrefas na cimo do braço esquerdo doíam-lhe. Depois do dia de Todos os Santos e do magusto, fora com a mãe ao hospital de Portimão onde lhe deram a vacina. Sentia muita comichão, mas o médico disse que era sinal de que "tinha pegado".

Brincava Maria Rosa aos carreiros de formigas, à sombra do carvalho, quando a mãe a foi chamar para dar um pouco da aguadilha da sua vacina à Naicinha, filha dos parentes da aldeia do Alto, que tinham acabado de chegar. Traziam um aparo de metal e uma pena de escrever para tirarem líquido e introduzirem no braço da outra menina. Maria Rosa fugiu e começou a chorar. Só a convenceram com a promessa de uma boneca pela Feira Franca de Lagos, a vinte de Novembro.

Quando recebeu a sua boneca de papelão, vestida de xadrez e com as pernas unidas, Maria Rosa iniciou logo os preparativos para o baptizado e marcou a data para o Dia de Natal (Dezembro é o mês da festa e quando as estrelas são mais brilhantes).
Maria Rosa olhava à noite para os castanheiros e via astros no lugar das castanhas. Durante a festa as árvores vestiam-se de luz.

Nunca tinha ouvido falar de árvores de Natal ou do Pai Natal. Conhecia o menino Jesus, mas ele não lhe dava prendas, pelo contrário, era ela que fazia despontar trigo e centeio para lhe oferecer as "searinhas" quando na casa de fora se armasse o presépio em forma de altar.

Ajudou a colocar caixas de cartão umas sobre as outras e a cobrir o presépio com uma toalha de linho enfeitada de renda de nós. Teve o cuidado de deixar em cima a caixa onde tinha vindo a sua boneca da feira. Sobre ela cintilava a lamparina de azeite. As suas searas, com mais de um palmo, muito verdes, atapetavam os degraus de baixo.

A família de Maria Rosa não tinha Menino Jesus para colocar no presépio, contentava-se com as searas e a lamparina. Mas no Dia de Natal apareceu a boneca de papelão deitada numas palhinhas, junto à lamparina, vestida de branco, com uma cruz na testa feita a azeite.
Estava baptizada, a boneca de Maria Rosa era o Menino Jesus. E todos lhe rezaram o terço durante a época da festa até depois dos Reis.

O dia de Natal cheira a fatias douradas polvilhadas de açúcar e canela. Cheira a chouriça, morcela, toucinho. Não há mais dia nenhum no ano em que se beba café em tigelinhas de bojo redondo à medida das mãos. "Tudo sabe tão bem porque o jejum de véspera é uma purificação", assim pensa Maria Rosa.

Maria Rosa já existiu, revive aqui a partir de factos relatados por Glória Marreiros. Depois de a conhecer, como é que se revêem neste espírito os Natais de hoje?

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