“Cada um tem o seu sentir, e eu cá não gosto de Lisboa”…Dona Hortênsia diz que na capital as pessoas entram em casa e trancam a porta. Vivem entre quatro paredes em prédios altos, onde não podem tocar a terra. Nas ruas andam muito depressa, sempre em frente e não se cumprimentam. Só gosta do rio enorme, a perder-se de vista.
Além de Lisboa, conhece também Portimão e Faro. É em Portimão que tem os filhos e teme o dia em que deixe de poder fazer o seu governo e vá morar com um deles, entre as tais quatro paredes. Dos doze casais, Dona Hortênsia é a única que resistiu ao apelo da cidade litoral mantendo-se na aldeia serrana.
Nasceu e toda a vida tem vivido na Picota, numa vertente virada a sul, com o mar lá em baixo. Semeia com o marido, como sempre semeou, um pedaço bom de terra e vai vender ao mercado da vila. Noutros tempos fazia esses nove quilómetros a pé, ir e vir dezoito, hoje já lhe custa. Apanha boleia ou vai de carro de praça. Mas já não precisa deslocar-se tanto, porque todas as semanas vem um camião comprar-lhe as cenouras, couves, alhos e o mais que esteja pronto. E também às sextas-feiras de manhã vem uma carrinha a fazer-lhe venda de peixe fresquinho.
Antes a serra era bastante povoada. Os primores hortícolas para Lisboa iam daqui e as feiras no litoral enchiam-se do aroma do pêro de Monchique. Ainda hoje se fala na batata e na cebola mas já quase não existem. As pessoas começaram a emigrar para Silves e sobretudo para Portimão.
Há cerca de dez, quinze anos, à serra começou a chegar gente nova. São na sua maioria jovens de países do norte da Europa que buscam um reencontro com a natureza, que professam filosofias de vida longe do consumismo. Dona Hortênsia tem outros vizinhos, as casas em volta da sua estão, uma vez mais, habitadas.
Quando lhe fui comprar ovos estava a Dona Hortênsia de volta das tomateiras. Deu-me algumas para eu dispor, duas alfaces de folhas viçosas e hortelã para chá, “que a de pôr na comida não é coisa que eu aprecie”.
Resolveu falar-me da vizinhança. “Antes éramos muitos, tínhamos escola primária, não havia canteiro que não estivesse tratado, nem casa sem a sua cabeça de gado. Hoje, sou eu e o meu marido rodeados de vizinhos estrangeiros em volta. Dou-me bem com eles, mas é outra lei que não é a nossa.”
Outra lei porquê?, perguntei. ”Querem mandar em tudo. Há uns tempos passou por aqui um rali de alguns trinta carros, com homens fardados de azul. Não sei quem organizou, devia ser com turistas. A vizinha estrangeira da frente veio falar comigo dizendo que ia fazer queixa à câmara. Eu respondi-lhe que se ali passavam é porque alguém os tinha autorizado. E ela insistia que ia tentar tudo para proibi-los de passar.
Uma outra vizinha veio dizer-me para eu soltar os meus cães. O que tem ela a ver com isso? Os cães à solta ainda se atiram a um carro e aleijam alguém. Além disso, vão-se embora e ficam para aí abandonados, sem comer nem beber.
Quem julgam que são?, vêm lá da terra deles mandar na nossa? É por isso que eu digo, cada qual no seu canto, e cada qual com a sua lei.”
Falou-me duns hippies que moram numa antiga destilaria de medronho. Têm água com fartura da fonte, mas não têm luz e as crianças andam mal vestidas, magras e sujas e têm o cabelo tão comprido que mal se lhes vê a cara.
Há outros: “ Ali naquela casa com um grande tanque de rega moram mais dois que fazem umas festas com a música mais alta de todos os tempos. Nessas noites não se dorme e durante o dia mal se pode passar na estrada porque vêm carros e roulottes de todo o lado, com formas e pinturas esquisitas.
Há uma semana, um casal veio viver para umas ruínas à saída da povoação. Já não passo por lá porque tenho medo dos cães deles, grandes e pretos, sempre a ladrarem. E fazem tudo às claras, é como se vivessem na rua.”
Dona Hortênsia confessou-me que tem saudades do convívio com gente de cá. No outro dia apertaram-lhe essas saudades e agarrou no telefone para falar com a irmã. Estava sem sinal, como sempre. “Basta fazer um ventinho de nada e fico sem telefone. Caem os postes e primeiro que os venham arranjar… “
Muita coisa mudou, vieram as estradas, os transportes, a electricidade, água canalizada e até o telefone, apesar das falhas. Chegaram um pouco tarde, já depois das gentes do lugar se terem ido embora.
Agora são outros que a pouco e pouco estão a repovoar os montes. Mas como se integram essas novas comunidades?
"Queria viver perto da vila de Monchique, não dentro", disse Dona Hortênsia. O que ela queria era mesmo viver onde sempre viveu, mas rodeada de gente da mesma lei.
Além de Lisboa, conhece também Portimão e Faro. É em Portimão que tem os filhos e teme o dia em que deixe de poder fazer o seu governo e vá morar com um deles, entre as tais quatro paredes. Dos doze casais, Dona Hortênsia é a única que resistiu ao apelo da cidade litoral mantendo-se na aldeia serrana.
Nasceu e toda a vida tem vivido na Picota, numa vertente virada a sul, com o mar lá em baixo. Semeia com o marido, como sempre semeou, um pedaço bom de terra e vai vender ao mercado da vila. Noutros tempos fazia esses nove quilómetros a pé, ir e vir dezoito, hoje já lhe custa. Apanha boleia ou vai de carro de praça. Mas já não precisa deslocar-se tanto, porque todas as semanas vem um camião comprar-lhe as cenouras, couves, alhos e o mais que esteja pronto. E também às sextas-feiras de manhã vem uma carrinha a fazer-lhe venda de peixe fresquinho.
Antes a serra era bastante povoada. Os primores hortícolas para Lisboa iam daqui e as feiras no litoral enchiam-se do aroma do pêro de Monchique. Ainda hoje se fala na batata e na cebola mas já quase não existem. As pessoas começaram a emigrar para Silves e sobretudo para Portimão.
Há cerca de dez, quinze anos, à serra começou a chegar gente nova. São na sua maioria jovens de países do norte da Europa que buscam um reencontro com a natureza, que professam filosofias de vida longe do consumismo. Dona Hortênsia tem outros vizinhos, as casas em volta da sua estão, uma vez mais, habitadas.
Quando lhe fui comprar ovos estava a Dona Hortênsia de volta das tomateiras. Deu-me algumas para eu dispor, duas alfaces de folhas viçosas e hortelã para chá, “que a de pôr na comida não é coisa que eu aprecie”.
Resolveu falar-me da vizinhança. “Antes éramos muitos, tínhamos escola primária, não havia canteiro que não estivesse tratado, nem casa sem a sua cabeça de gado. Hoje, sou eu e o meu marido rodeados de vizinhos estrangeiros em volta. Dou-me bem com eles, mas é outra lei que não é a nossa.”
Outra lei porquê?, perguntei. ”Querem mandar em tudo. Há uns tempos passou por aqui um rali de alguns trinta carros, com homens fardados de azul. Não sei quem organizou, devia ser com turistas. A vizinha estrangeira da frente veio falar comigo dizendo que ia fazer queixa à câmara. Eu respondi-lhe que se ali passavam é porque alguém os tinha autorizado. E ela insistia que ia tentar tudo para proibi-los de passar.
Uma outra vizinha veio dizer-me para eu soltar os meus cães. O que tem ela a ver com isso? Os cães à solta ainda se atiram a um carro e aleijam alguém. Além disso, vão-se embora e ficam para aí abandonados, sem comer nem beber.
Quem julgam que são?, vêm lá da terra deles mandar na nossa? É por isso que eu digo, cada qual no seu canto, e cada qual com a sua lei.”
Falou-me duns hippies que moram numa antiga destilaria de medronho. Têm água com fartura da fonte, mas não têm luz e as crianças andam mal vestidas, magras e sujas e têm o cabelo tão comprido que mal se lhes vê a cara.
Há outros: “ Ali naquela casa com um grande tanque de rega moram mais dois que fazem umas festas com a música mais alta de todos os tempos. Nessas noites não se dorme e durante o dia mal se pode passar na estrada porque vêm carros e roulottes de todo o lado, com formas e pinturas esquisitas.
Há uma semana, um casal veio viver para umas ruínas à saída da povoação. Já não passo por lá porque tenho medo dos cães deles, grandes e pretos, sempre a ladrarem. E fazem tudo às claras, é como se vivessem na rua.”
Dona Hortênsia confessou-me que tem saudades do convívio com gente de cá. No outro dia apertaram-lhe essas saudades e agarrou no telefone para falar com a irmã. Estava sem sinal, como sempre. “Basta fazer um ventinho de nada e fico sem telefone. Caem os postes e primeiro que os venham arranjar… “
Muita coisa mudou, vieram as estradas, os transportes, a electricidade, água canalizada e até o telefone, apesar das falhas. Chegaram um pouco tarde, já depois das gentes do lugar se terem ido embora.
Agora são outros que a pouco e pouco estão a repovoar os montes. Mas como se integram essas novas comunidades?
"Queria viver perto da vila de Monchique, não dentro", disse Dona Hortênsia. O que ela queria era mesmo viver onde sempre viveu, mas rodeada de gente da mesma lei.
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