domingo, 17 de agosto de 2008

Salazar fez o Lince


- Foi Salazar quem fez o lince.
- Como??!!
- Sim, foi Salazar com a Campanha do Trigo. Onde há trigo há coelhos, e os linces comem coelhos. Hoje, não há trigo, não há coelhos e não há lince.

O meu interlocutor no Café da Vila, em Monchique, tem esta forma muito sua de me dar os bons dias: com comentários muito pessoais põe-me ao corrente das últimas notícias da terra.
- Então não sabe? Esta tarde vêm aí todos para falar do lince.

À tarde lá fui à procura de "todos" nas instalações da Caixa de Crédito Agrícola .
A conferência sobre o Lince Ibérico, organizada pela associação “A Nossa Terra”, tinha como conferencistas Eduardo Gonçalves, jornalista e dirigente da associação SOS - Lince e Catarina Ferreira, bióloga do Instituto de Conservação da Natureza (ICN) que, durante toda a tarde, mantiveram animado debate com uma assistência de cerca de 30 pessoas, maioritariamente estrangeiros residentes na região.

Ficou-se a saber que, de acordo com os estudos realizados pelo ICN, presentemente não há registo de Lynx pardina em Portugal, ou de Gato Cravo, como é conhecido nas serras, apesar de a SOS - Lince ter registos de avistamentos recentes em Monchique, Caldeirão, Brejeira, Cercal e Silves.

Segundo Eduardo Gonçalves restam apenas 150 indivíduos em reservas naturais espanholas e o técnicos consideram que o lince está situação de pré-extinção. Por essa razão, é grande a urgência de investir na reprodução em cativeiro e posterior reinserção, paralelamente à recuperação de habitats. Em Espanha já se iniciaram investimentos neste sentido e em Portugal o Plano de Acção para a Conservação do Lince Ibérico, promovido pelo ICN com o apoio de diversas entidades e em fase de discussão pública, propõe o mesmo caminho e tem implementação para breve em diversas zonas do país, entre as quais a serra de Monchique.

À medida que ouvia estas informações, a frase jogada de rompante pelo meu amigo daquela manhã impunha-se mais e mais no meu pensamento.

De facto, até meados do século XX, Portugal era um país profundamente rural. A pressão das populações sobre os recursos era enorme, todo o bocadinho de terreno era arroteado, não havia esteva que não fosse colhida e sobreiro que não fosse podado para lenha. A mata andava limpa e o matagal mediterrânico limitava-se as vertentes mais declivosas.

Era este o habitat dos muitos linces que povoavam as nossas serras. Era este ecossistema, fortemente humanizado mas com um índice de povoamento baixo e uma amplitude muito grande de ocupação do território, onde se desenvolve a fauna cinegética , que suportava o lince: é nas manchas agrícolas que os coelhos se alimentam de erva e as perdizes de grão e, além disso, um predador como o lince precisa de espaço aberto para localizar e correr para as suas presas.

Foi este ecossistema que se desmoronou na segunda metade do século passado. O êxodo rural e a quebra de competitividade da agricultura artesanal abriram caminho à eucaliptização da serra. Que se saiba os coelhos e as perdizes não gostam de eucalipto. Então os linces viviam do quê se até as capoeiras desapareceram?!

Fará sentido falar da recuperação do lince quando não há perspectivas de recuperação do ecossistema ao qual pertencia?

Quando um ecossistema desaparece, as espécies têm duas vias possíveis: ou desaparecem com ele ou se readaptam. Há casos felizes, como as galinhas sultanas nos campos de golfe.

Na situação actual, em que o ecossistema dominante nada tem a ver com o seu habitat tradicional, terá o lince capacidade de se readaptar?
E se não tiver, alguém acredita que as políticas de ordenamento do território vão ser gizadas com a preocupação central de reconstituir o habitat do lince?

Já sei que é apanágio do homem pôr e dispôr da vida e do futuro das outras espécies. Ética e conservacionismo têm para mim uma relação conflituosa. E sempre que ouço falar de reservas e parques temáticos não consigo evitar a analogia a enlatados de natureza.

Começo a ficar um bocado saturada de ver os bichos servirem de pretexto para a criação de emprego ao abrigo de um dos tantos programas comunitários, ou de constituírem o chamariz para a facturação de um
zoo - parque qualquer. Por isso, se a única hipótese do lince for a reserva genética …

Prefiro saudar a memória digna desse gato capaz de furar uma pedra com uma mirada dos seus olhos amêndoa e mel, tal como o Deus grego Linceo. Os homens chamam-lhe lince e ainda lhe cobiçam o olhar.

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