domingo, 23 de novembro de 2008
OHHHHHHHH!!!
Era uma vez uma mão
a apontar numa direcção.
Mas não era bem, bem uma mão
era…..
OHHHHHHHHH!
Era o Crocodilo Aprendiz
a equilibrar uma chávena
na ponta do nariz.
A chávena tinha chocolate
quente, quente que se derretia.
Mas não era bem, bem uma chávena
era…..
OHHHHHHHHH!
Era um navio de brincadeira,
com cinco chaminés e um peixe
a espiar-lhe a bandeira.
O peixe era mágico
e fazia bolas de sabão.
Mas não era bem, bem um peixe
era…..
OHHHHHHHHH!
Era o pato Afonso Nico
há duas horas a tirar
uma mola da ponta do bico.
A mola de roupa
era de madeira e estava rouca.
Mas não era bem, bem uma mola
era…..
OHHHHHHHHH!
O tal peixe mágico
prestes a comer uma maçã
de um venenoso verde metálico.
A maçã era da Eva
envenenada pela serpente.
Mas não era bem, bem uma maçã
era…..
OHHHHHHHHH!
O Palhaço Assim-Assim
que andava à caça
do seu sapato de cetim.
O sapato de cetim
era brilhante e perdeu os atacadores.
Mas não era bem, bem um sapato
era…..
OHHHHHHHHH!
Era a Dragona das Bossas Douradas
a contar histórias à lua
que acorda triste nas madrugadas.
A lua adormeceu,
feliz com as histórias.
Mas não era bem, bem a lua
era…..
OHHHHHHHHH!
Era a tal serpente
que transformou a maçã
numa bela raquete reluzente.
A raquete de ping – pong
era vermelha e voava.
Mas não era bem, bem uma raquete
era…..
OHHHHHHHHH!
Era um aviãozinho lindo
que sabia a morango
e fumava cachimbo.
O cachimbo era de ouro
e o fumo fazia desenhos no ar.
Mas não era bem, bem um cachimbo
era…..
OHHHHHHHHH!
Era o Gato Pirulito
que olhava para a escova de dentes
como se fosse um palito.
A escova de dentes
era robusta e equilibrista.
Mas não era bem, bem uma escova
era……
OHHHHHHHHH!
Era um elefante curioso
que abria a Caixa dos Segredos
e abanava a cauda todo vaidoso.
A Caixa dos Segredos
tinha dentro o Palhaço Assim-Assim.
Mas não era bem, bem a Caixa dos Segredos
era….
OHHHHHHHHH!
A charrete do Trovador
puxada pelo Cinzento
que na boca levava uma flor.
A flor era o lírio amarelo
que tem os pós de Perlimpimpim.
Mas não era bem, bem uma flor
era…..
OHHHHHHHHH!
Era um enorme ramo de flores
que a Crocodília oferece ao Crocodilo Aprendiz
cheia de amores e muito feliz!
(criado a partir do livro “OH” de Josse Goffin)
a apontar numa direcção.
Mas não era bem, bem uma mão
era…..
OHHHHHHHHH!
Era o Crocodilo Aprendiz
a equilibrar uma chávena
na ponta do nariz.
A chávena tinha chocolate
quente, quente que se derretia.
Mas não era bem, bem uma chávena
era…..
OHHHHHHHHH!
Era um navio de brincadeira,
com cinco chaminés e um peixe
a espiar-lhe a bandeira.
O peixe era mágico
e fazia bolas de sabão.
Mas não era bem, bem um peixe
era…..
OHHHHHHHHH!
Era o pato Afonso Nico
há duas horas a tirar
uma mola da ponta do bico.
A mola de roupa
era de madeira e estava rouca.
Mas não era bem, bem uma mola
era…..
OHHHHHHHHH!
O tal peixe mágico
prestes a comer uma maçã
de um venenoso verde metálico.
A maçã era da Eva
envenenada pela serpente.
Mas não era bem, bem uma maçã
era…..
OHHHHHHHHH!
O Palhaço Assim-Assim
que andava à caça
do seu sapato de cetim.
O sapato de cetim
era brilhante e perdeu os atacadores.
Mas não era bem, bem um sapato
era…..
OHHHHHHHHH!
Era a Dragona das Bossas Douradas
a contar histórias à lua
que acorda triste nas madrugadas.
A lua adormeceu,
feliz com as histórias.
Mas não era bem, bem a lua
era…..
OHHHHHHHHH!
Era a tal serpente
que transformou a maçã
numa bela raquete reluzente.
A raquete de ping – pong
era vermelha e voava.
Mas não era bem, bem uma raquete
era…..
OHHHHHHHHH!
Era um aviãozinho lindo
que sabia a morango
e fumava cachimbo.
O cachimbo era de ouro
e o fumo fazia desenhos no ar.
Mas não era bem, bem um cachimbo
era…..
OHHHHHHHHH!
Era o Gato Pirulito
que olhava para a escova de dentes
como se fosse um palito.
A escova de dentes
era robusta e equilibrista.
Mas não era bem, bem uma escova
era……
OHHHHHHHHH!
Era um elefante curioso
que abria a Caixa dos Segredos
e abanava a cauda todo vaidoso.
A Caixa dos Segredos
tinha dentro o Palhaço Assim-Assim.
Mas não era bem, bem a Caixa dos Segredos
era….
OHHHHHHHHH!
A charrete do Trovador
puxada pelo Cinzento
que na boca levava uma flor.
A flor era o lírio amarelo
que tem os pós de Perlimpimpim.
Mas não era bem, bem uma flor
era…..
OHHHHHHHHH!
Era um enorme ramo de flores
que a Crocodília oferece ao Crocodilo Aprendiz
cheia de amores e muito feliz!
(criado a partir do livro “OH” de Josse Goffin)
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
Dois Rumos
Uma garrafa derrubada sobre a mesa deixa sair líquido às golfadas. A cadeira está de lado e o entrançado de palma molhado. A outra cadeira, em frente, está virada para o lado oposto, para o mar.
Duas pessoas estão sentadas. Os dois copos estão limpos.
Uma olha para o mar, a outra olha para o muro de pedra.
Não se cruzam, nem nos olhares.
Um dos pés balança.
Cai o cinzeiro vazio.
Duas mãos avançam para apanhar o cinzeiro.
Tocam-se os dedos.
Duas pessoas estão sentadas. Os dois copos estão limpos.
Uma olha para o mar, a outra olha para o muro de pedra.
Não se cruzam, nem nos olhares.
Um dos pés balança.
Cai o cinzeiro vazio.
Duas mãos avançam para apanhar o cinzeiro.
Tocam-se os dedos.
Em Busca de Par no Caldo Primitivo
No início dos tempos, o nosso planeta gorbulhava numa calda de enxofre. Dizem os cientistas que eram os gases que se libertavam da água para a atmosfera.
Como é sabido, em ciência, as teorias estão no pedestal enquanto não são destronadas por outras novas. Aqui se propõe uma versão distinta para a origem da imensa efervescência do caldo primitivo.
Celuleucas, prometistos, amelgas e colimécios circulam em busca de par no caldo primitivo.
É uma loucura de trocar os olhos assistir aos raids de organismos tão rotativos. A velocidade é uma constante naqueles mares químicos.
Porquê?
Querem reproduzir-se para dominar quatro quintos da Terra desfeita em água.
Por isso provocam entre si todo o tipo de encontros fortuitos. E é tanto o rebuliço que as águas libertam fumos, claro está, da temperatura da espaventosa circulação!
Há desencontros também. Tal é o caso da celuleuca Dona Centopina que foge daqueles que a elegeram como par. Ou do espanto envergonhado dos colimécios, pretendentes rejeitados pela Dona Virgolina, quando ela os convida para dançar…
A febre nos oceanos primitivos, devido ao frenesi dos organismos que pululam, é tal que… a água se evapora… e temos gorbulhas, golhas e gorbulinas a saltar de um caldo fervente.
Como é sabido, em ciência, as teorias estão no pedestal enquanto não são destronadas por outras novas. Aqui se propõe uma versão distinta para a origem da imensa efervescência do caldo primitivo.
Celuleucas, prometistos, amelgas e colimécios circulam em busca de par no caldo primitivo.
É uma loucura de trocar os olhos assistir aos raids de organismos tão rotativos. A velocidade é uma constante naqueles mares químicos.
Porquê?
Querem reproduzir-se para dominar quatro quintos da Terra desfeita em água.
Por isso provocam entre si todo o tipo de encontros fortuitos. E é tanto o rebuliço que as águas libertam fumos, claro está, da temperatura da espaventosa circulação!
Há desencontros também. Tal é o caso da celuleuca Dona Centopina que foge daqueles que a elegeram como par. Ou do espanto envergonhado dos colimécios, pretendentes rejeitados pela Dona Virgolina, quando ela os convida para dançar…
A febre nos oceanos primitivos, devido ao frenesi dos organismos que pululam, é tal que… a água se evapora… e temos gorbulhas, golhas e gorbulinas a saltar de um caldo fervente.
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domingo, 2 de novembro de 2008
A Cabra Montês
Todas as manhãs
lá está ela outra vez,
a preparar-se para a corrida,
a coleante Cabra Montês.
Esta cabra não nos salta
em cima e faz em três.
Esta cabra
galopa neblinas
trota estrelas
amacia colinas
corre amanheceres.
Se acorda tempestades
de ribombões e faíscas
desenham-se na sua cauda
balões – leques às listas.
Se a aurora é limpa
e cintilam rumores de alfazema,
ganha a cor e o sabor do morango
em cada uma das pernas.
Se o dia tarda por ser Verão
e espreguiça-se o sol, dormente,
a cabra montês fica xadrez
na sua cara de veludo quente.
Mas é quando se abre a primeira flor
gritando a Primavera,
que no seu lábio superior
nasce uma linha em espiral
solta, seiva destemida,
corre, corre, corre
em infinita corrida.
lá está ela outra vez,
a preparar-se para a corrida,
a coleante Cabra Montês.
Esta cabra não nos salta
em cima e faz em três.
Esta cabra
galopa neblinas
trota estrelas
amacia colinas
corre amanheceres.
Se acorda tempestades
de ribombões e faíscas
desenham-se na sua cauda
balões – leques às listas.
Se a aurora é limpa
e cintilam rumores de alfazema,
ganha a cor e o sabor do morango
em cada uma das pernas.
Se o dia tarda por ser Verão
e espreguiça-se o sol, dormente,
a cabra montês fica xadrez
na sua cara de veludo quente.
Mas é quando se abre a primeira flor
gritando a Primavera,
que no seu lábio superior
nasce uma linha em espiral
solta, seiva destemida,
corre, corre, corre
em infinita corrida.
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No Mundo das Beijocas
O Detective Olho Azul
finalmente encontra
o Mundo das Beijocas.
- Estão todos presos!
Por excesso de beijoquice!
Muitas Beijocas! Muitas!
Pelo chão! Pelo ar!
Com asas e com rodas!
São aos milhões!
Bocas grandes! Vermelhas!
Beijinhos aos borbotões!
- Estão presos!
Excesso de beijoquice!
Já disse!
A correr aos esses
vão as beijoletas
e como queijos
em redondoitos
reboletam os borbeijos.
Jinhos pequenininhos
vão pelo Detective acima
numa fila estreita,
em ritmo Chuack
de oitava perfeita.
O Detective Olho Azul
não dá por nada
e coça o pé
a pensar que são formigas…
E num segundo
todo o seu corpo
fica coberto
de Jinhos e mais Jinhos
como se fosse um bolo
ooberto de chocolatinhos.
Por entre as Beijocas
avança a Boca Rosa Maculada
e prega no detective Olho Azul
uma lambidela lambuzada.
E foi assim
que o Detective Olho Azul …
se transbeijocou
em mil e um beijiundos.
Para sempre.
finalmente encontra
o Mundo das Beijocas.
- Estão todos presos!
Por excesso de beijoquice!
Muitas Beijocas! Muitas!
Pelo chão! Pelo ar!
Com asas e com rodas!
São aos milhões!
Bocas grandes! Vermelhas!
Beijinhos aos borbotões!
- Estão presos!
Excesso de beijoquice!
Já disse!
A correr aos esses
vão as beijoletas
e como queijos
em redondoitos
reboletam os borbeijos.
Jinhos pequenininhos
vão pelo Detective acima
numa fila estreita,
em ritmo Chuack
de oitava perfeita.
O Detective Olho Azul
não dá por nada
e coça o pé
a pensar que são formigas…
E num segundo
todo o seu corpo
fica coberto
de Jinhos e mais Jinhos
como se fosse um bolo
ooberto de chocolatinhos.
Por entre as Beijocas
avança a Boca Rosa Maculada
e prega no detective Olho Azul
uma lambidela lambuzada.
E foi assim
que o Detective Olho Azul …
se transbeijocou
em mil e um beijiundos.
Para sempre.
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O Arqueiro
O arqueiro lança longe
mais um cheiro:
o da lã do carneiro
que estava no ninho da carriça.
Longe vai o cheiro,
até a uma barca, no mar.
Ao cair o cheiro quente do ninho
da lã do carneiro
no fundo da barca de madeira,
dele e dela,
a palavra amarga muda de tom,
começa a surgir brandura baixinho
e a barca passa a ninho.
O arqueiro semeia
outro cheiro:
o da terra – viva
em profusão primaveril.
Atravessa o campo
e cai na cidade,
num lancil de cimento,
e logo ali,
quem passa, sorri.
O arqueiro
permeia
memórias do que somos
com sonhos de maré cheia.
Trauteia
o campo com pedacinhos de mar
e a cidade que com fruta se recheia.
Caldeia
cheiros de lava
com perfumes de lavanda.
O arqueiro
é o Costureiro.
O arco leva a maçã sadia
que une aos rumores de maresia.
E caminha no suave bulício
do fogo que atea.
mais um cheiro:
o da lã do carneiro
que estava no ninho da carriça.
Longe vai o cheiro,
até a uma barca, no mar.
Ao cair o cheiro quente do ninho
da lã do carneiro
no fundo da barca de madeira,
dele e dela,
a palavra amarga muda de tom,
começa a surgir brandura baixinho
e a barca passa a ninho.
O arqueiro semeia
outro cheiro:
o da terra – viva
em profusão primaveril.
Atravessa o campo
e cai na cidade,
num lancil de cimento,
e logo ali,
quem passa, sorri.
O arqueiro
permeia
memórias do que somos
com sonhos de maré cheia.
Trauteia
o campo com pedacinhos de mar
e a cidade que com fruta se recheia.
Caldeia
cheiros de lava
com perfumes de lavanda.
O arqueiro
é o Costureiro.
O arco leva a maçã sadia
que une aos rumores de maresia.
E caminha no suave bulício
do fogo que atea.
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A Noiva
Lia, a cotovia,
é a noiva da noite
é a noiva do dia.
Vai casar ao sol postinho
vestida de avental xadrez,
tecido do mais leve ninho
suavizado da mais breve tez.
Lia, a cotovia,
caminha até ao altar
no cimo da oliveira
mais sábia, mais verdadeira.
Sobe ao cume
onde é coada a luz do mundo.
E apronta-se para casar.
Afofa os laços ao vento,
a sombra nos olhos alecrim.
Põe baton,
ajeita os sapatinhos de cetim.
E chega ao cimo da noite,
ao fim do dia,
noiva, noiva, noiva
chilreia Lia, a cotovia,
noiva da noite, noiva do dia.
é a noiva da noite
é a noiva do dia.
Vai casar ao sol postinho
vestida de avental xadrez,
tecido do mais leve ninho
suavizado da mais breve tez.
Lia, a cotovia,
caminha até ao altar
no cimo da oliveira
mais sábia, mais verdadeira.
Sobe ao cume
onde é coada a luz do mundo.
E apronta-se para casar.
Afofa os laços ao vento,
a sombra nos olhos alecrim.
Põe baton,
ajeita os sapatinhos de cetim.
E chega ao cimo da noite,
ao fim do dia,
noiva, noiva, noiva
chilreia Lia, a cotovia,
noiva da noite, noiva do dia.
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quarta-feira, 10 de setembro de 2008
O Táxi do Caracol Almoxarife
O Caracol Almoxarife
é taxista e...
roda que vai
roda que gira
Lá vai ele, e já lá aí vai
curvas, rectas, rodopiões…
roda que vai
roda que gira
Taga e Rela, as manas siamesas,
querem entrar.
O Caracol Almoxarife trava e …
roda que vai
roda que gira
Têm pressa!
- Que bom! – diz o taxista Almoxarife,
e num acelerar psicadélico…
roda que vai
roda que gira
Lá vão os três!
Taga e Rela sentam-se em conforto rolado,
nos dois assentos da sua concha em espiral
roda que vai
roda que gira
E tanto tagarela Taga
como tagarela Rela
que nem sentem o táxi elevar-se no ar
roda que vai
roda que gira
Sobem, sobem, sobem
sobem e relam, taga e relam
roda que vai
roda que gira
Taga e relam sem parar
táxi-cometa sem parar
roda que vai
roda que gira
Taga e Rela, Taga e Rela,
Taga e Rela, Taga e Rela…
é taxista e...
roda que vai
roda que gira
Lá vai ele, e já lá aí vai
curvas, rectas, rodopiões…
roda que vai
roda que gira
Taga e Rela, as manas siamesas,
querem entrar.
O Caracol Almoxarife trava e …
roda que vai
roda que gira
Têm pressa!
- Que bom! – diz o taxista Almoxarife,
e num acelerar psicadélico…
roda que vai
roda que gira
Lá vão os três!
Taga e Rela sentam-se em conforto rolado,
nos dois assentos da sua concha em espiral
roda que vai
roda que gira
E tanto tagarela Taga
como tagarela Rela
que nem sentem o táxi elevar-se no ar
roda que vai
roda que gira
Sobem, sobem, sobem
sobem e relam, taga e relam
roda que vai
roda que gira
Taga e relam sem parar
táxi-cometa sem parar
roda que vai
roda que gira
Taga e Rela, Taga e Rela,
Taga e Rela, Taga e Rela…
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sábado, 23 de agosto de 2008
Concerto de Trompete Voador assusta a Senhora das Águas e traz à luz do dia a Máscara do Pirata Encantado
O Trompete Voador só canta canções de pirata:
- Sou o pirata da perna de pau, de olho de vidro e cara de mau…
Bem queria tocar canções mais próprias de um trompete com formação clássica, por isso tenta, tenta… Todos os dias tenta uma marcha fantástica que ele adora, o “Wash Post”, mas nada. Sempre que os seus botões se baixam sai o mesmo tema:
- Sou o pirata da perna de pau, de olho de vidro e cara de mau…
O trompete voador não percebia porquê e resolveu ir pedir ajuda à Senhora das Águas.
Navegou pelos ares mesmo juntinho à superfície das ondas, até que chegou às montanhas submarinas de Gorringe, no oceano Atlântico, a caminho da ilha da Madeira.
Ficou a tocar por ela durante 7 dias e 7 noites. Interpretava ininterruptamente a mesma canção:
- Sou o pirata da perna de pau, de olho de vidro e cara de mau…
Até que, exausto de tanto trompetar, deu um suspiro tão forte que conseguiu o timbre mais horrível do mundo!
- Vhhee Frrhuuuu…
Assustada, a Senhora das Águas irrompeu das profundezas para ver se era o gigante Adamastor!
A Senhora saiu tão depressa que uma máscara salta da água e cola-se ao Trompete Voador que num segundo se transforma… no Pirata Encantado!
O Pirata Encantado mergulha, recupera a sua nau que as areias remexidas deixaram a descoberto e põe-se a navegar rumo a Portugal. Como as velas estavam podres, a Medusa Xis ofereceu-se para se desfraldar no mastro.
Tudo a postos, só falta a canção. E foi aí que o pirata se espantou: da sua voz não saíam trovas de corsário, só marchas!
E é assim que a nau do Pirata Encantado se está a aproximar da nossa costa, ao som do “Wash Post”:
– Pam, pam, para, rã, pam, pam, pa-rã, rã… pam, pam, para, pari, rarã…
pam, pam, para, pari, rarã…
Pam, pam, para, rã, pam, pam, pa-rã, rã…
pam, pam, pa rã, pam, pam, pa rã
pam, pam, pa rã, pa rã, pa rã
quarta-feira, 20 de agosto de 2008
O Espírito da Lei
Claramente, em Portugal, a lei é um sofisma e o estado de direito uma entidade virtual. O que realmente nos governa é o espírito da lei.
Por si só não seria grave, não se desse o caso de a lei mudar de estado de espírito. Pior ainda, por vezes, a lei até perde o espírito.
Assim, ao incauto cidadão, não basta conhecer a lei. E também não basta resolver os problemas de iliteracia de que tanto se tem falado para compreender a lei, e isto por dois motivos:
· o primeiro porque quem redige a lei padece dos mesmos problemas de iliteracia
· o segundo decorre deste: como ninguém entende a letra da lei, tem que se interpretar o espírito, e para isso, claro está, é preciso ser-se iniciado nessa arte ancestral de contactar o além.
É que a lei não é fornecida com espírito, e o espírito varia, varia muito, Oh se varia!....Varia com a cor política do governo, varia com o estatuto financeiro do cidadão, varia com os laços familiares existentes entre espírito e cidadão... varia, varia, varia....
Dá-se o caso que aqui há algum tempo, um amigo meu (o tal incauto cidadão), com a mania que tinha resolvido os problemas de iliteracia graças a uma colecção de canudos que tem algures nas gavetas, teve a ousadia de tentar legalizar um empreendimento nos termos da lei, sem consultar previamente qualquer espírito. Não percebo o espanto dele quando quase todos os pareceres institucionais recolhidos lhe eram desfavoráveis invocando o “espírito da lei”.
E vá de tentar perceber, no caso concreto, qual era afinal o espírito da lei.
A iniciativa estava condenada à partida pelo facto de se desenrolar em pleno período de férias; como se sabe, nesta altura do ano, todos os organismos da administração pública mantêm-se em funcionamento só que, vá-se lá saber porquê!, nenhum funciona. De secretaria de estado para direcção geral, de direcção geral para direcção regional, de direcção regional de novo para secretaria de estado, da telefonista do serviço geral para a telefonista do serviço de relações públicas, desta para a telefonista do sub-secretário do secretário do chefe de divisão do director geral, que devolve a chamada à secretária da directora de serviços do sub-director geral, e esta sim, conhecia um iniciado que o poderia iniciar no entendimento do sobrenatural. E devolveu a chamada à telefonista do serviço geral que a passou à secretária deste Messias.
Azar do meu amigo: a criatura estava em reunião. No dia seguinte às 10.30 h ainda não tinha chegado e às 11.15 já tinha saído para almoço. Às 15.10h ainda não tinha chegado do almoço e às 15.30h já tinha saído em serviço externo, onde permaneceu o resto da semana.
E foi graças à telefonista da secretária (com o auscultador exausto e as orelhas exangues) que o Esperado telefonou ao meu amigo. Então, vem-se a descobrir que afinal este iniciado não era especialista em contactar aquele espírito. Dá-se o caso que com a saída do anterior Governo saiu também para parte incerta o iniciado no espírito da lei em causa. E assim aquela lei perdeu o espírito!
Mas a administração pública não se atrapalha...assim, cada instituição, cada departamento, cada técnico, cada telefonista dá tratos à imaginação para de novo dotar de espírito a pobre lei, que já vivia, coitada! num sindroma de profunda orfandade. Valha-nos isso.
Só assim se compreende que quatro instituições diferentes invoquem para a mesma lei quatro espíritos antagónicos.
Desabafava o meu amigo, após esta experiência transcendental, que para que esta relação entre estado e cidadão não se transformasse num contrato leonino, como dizia o Eça, deveria ser assegurado aos cidadãos evocar o espírito dos seus actos quando praticados contra a lei. É por isso que não faz sentido nenhum que o Sr Vale e Azevedo tenha sido preso por burlar o Benfica: o espírito dele sempre foi o de devolver ao clube o dinheiro que tinha depositado nas suas contas. E já agora, por essas e por outras, não se atreva o estado a acusar alguém impunemente de fugir aos pagamentos ao fisco ou à segurança social, sob pena de o arguido atirar um espírito qualquer à cara do Ministério Público.
Este meu amigo sempre se considerou descendente directo da Padeira de Aljubarrota; sempre clamou que Olivença é nossa; é capaz de comprar uma caixa inteira de pêssegos podres portugueses mas não compra um luzidio pêssego espanhol; passou o mês de férias à procura do polícia espanhol que deu a bofetada no Francisco Louçã para lha devolver com juros e custas, mas jura que se em Espanha não se governarem pelo espírito das leis, ele quer ser espanhol.
Chuva de Nuteixo
O Mago P.M.C. Zóico vivia numa planície muito, muito quente, no início do Reino Meso. Adorava Hercínica, a montanha mais alta de todos os tempos, que avistava ao longe, através da janela maior da sua casa.
Os animais que habitavam o centro do continente único iam visitá-lo com frequência para pedir chuva. Mas como o Mago adorava calor, só mesmo quando o solo do deserto começou a gretar é que resolveu atender aos pedidos.
O Mago P.M.C. Zóico tinha uma âncora mágica que controlava a chuva: o Nuteixo. Bastava pegar nele, dizer as palavras certas e abria-se o chuveiro das nuvens. Mas acontece que já tinha passado muito tempo desde que fizera o último curso de actualização de feitiços e não se lembrava muito bem da fórmula encantada. Por outro lado, o Nuteixo estava ainda em fase de experimentação como substituto da velha varinha mágica.
Mas mesmo assim decidiu experimentar:
“Ussuruputu, Ussuruputu
Nuteixo lindú, Nuteixo lindú
Chuvinha, Chuvinha
Chuvinha me dás tu”
Mal acabou de dizer a última palavra começou a chover.
- Fantástico!! Disse o Mago, assarapantado com o seu feito.
Foi uma festa, os dinossáurios levaram-no em ombros… Todos os animais do reino Meso cantaram e dançaram durante três dias e três noites.
Quando já chegava, o mágico disse ao Nuteixo para fechar a torneira celeste. Mas ele não parou e verteu água durante 64 anos.
Quando caiu a última pinga, os animais, escorrendo – pingando, apresentaram-se ao Mago, furibundos… e o Mago prometeu-lhes que para a próxima iria estudar melhor os passos da magia.
Mas o que o deixou realmente triste foi olhar para a sua tão amada montanha Hercínica e vê-la mais pequena. Os picos mais altos tinham sido desgastados pela força das torrentes. A Montanha corria liquefeita, transportada pelos rios e depositada nos vales.
Os dias passaram e voltou a ficar um calor infernal. E repetiu-se o mesmo, o Mago pediu chuva ao Nuteixo (mas cautelarinho, com uma nova dosagem, para ver se não chovia durante tanto tempo):
- ziringundonastro, ziringundoneu
faz cair, Nuteixo, Nuteixo
alguma chuva
(só mesmo alguma)
lá do céu
ziringundoneu, ziringundonastro
faz cair, Nuteixo, Nuteixo
alguma chuva
(só mesmo alguma)
lá do astro
Mas veio um dilúvio. A chuva só parou anos depois, a montanha ficou ainda mais baixa e os vales acumularam ainda mais areia. E isto sucedeu vezes sem conta, chuva, calor, chuva, calor, chuva… O Mago experimentou todas as palavras mágicas que sabia, até que resolveu ir a um novo curso de actualização aprender os termos certos para experimentar no Nuteixo.
Quando voltou… bem, quando voltou já tinha parado de chover mas também já não havia montanha. O desmantelar de Hercínica dera lugar, com o passar dos anos, a uma rocha vermelha acumulada nos vales.
A essa rocha, feita dos grãos de areia filhos de Hercínica, o Mago chamou grés. E podia contemplar toda a paisagem de grés a partir de qualquer janela da sua casa.
Estava radiante: afinal, não é qualquer mago que vive num reino de vales vermelhos. E viver num reino de vales vermelhos é um espanto!
terça-feira, 19 de agosto de 2008
A Princesa do Gesso
O Mago Zóico tinha um olhar distante, não se lhe podia dizer nada. Todos os dias fazia o mesmo: precipitar calcários. Descia as escadinhas da sua casa na praia e ia para dentro de água.
Mas o mar andava tão cheio de argilas que em vez de calcários brancos saiam-lhe margas vermelhas. Nunca fazia duas rochas iguais; às vezes, lá conseguia uma 100% carbonatada, mas acabou por criar exemplares com cada vez mais argila até chegar às margas. Como guardava sempre tudo, guardou aquelas também.
Quando achou que tinha as rochas suficientes, começou a construir um palácio de calcário branco. A famíla dos Grandes Foraminíferos ofereceu-se para ajudá-lo. Mas não aceitou. Disse-lhes que era um projecto pessoal.
O caso é que, há muito tempo atrás, o Mago tinha conhecido uma rapariga quando ela se banhava numa laguna de águas de leite. Era a Princesa do Gesso.
A Princesa morava num castelo rendilhado como uma sombra de papel. Avivava de brilhos multiclores qualquer coisa em que tocasse, que se não fosse branca, branca ficava. Cortinados, sofás, panelas da cozinha, eram de gesso. A harpa marfim que ondulava era de gesso. O seu anel era de gesso. Todos reflectiam as cores da luz como as paredes filigrana do Castelo.
Do seu corpo, ao passar, emanava um suave pó – de - alva. E deixava a frescura do gesso na pele.
Porém, a Princesa era prisioneira do Grande Magma, que, perdido de amores e sem sentir-se correspondido, lhe tinha lançado uma maldição:
- Ficarás encantada no Castelo. Só acordarás quando o mundo for todo branco e quando o gesso brotar do chão.
O Grande Magma enviou lava que, durante milhões de anos, invadiu as lagoas costeiras, tal como a da Princesa. O seu castelo foi sendo soterrado por camadas e camadas de rochas, umas vulcânicas, outras sedimentares. Mas ela estava a dormir, de nada se apercebeu. Como não se apercebeu o Mago, de tão distraido e ocupado que esteve a consertar as roturas do Pangea.
Mas agora só pensa em libertar a princesa.
Eis o seu plano: 1º - criar os calcários e com eles construir um palácio para a Princesa viver num mundo todo branco; 2º - aproximar a África da Península Ibérica para fazer irromper gesso do chão.
Depois de concluir o Palácio Branco, o Mago deixou o Nuteixo descansar durante uns dias e deu-lhe brilho com algas vermelhas. Preparava-se para a segunda parte do plano. Mover continentes era uma das magias mais ousadas que um Mago podia fazer.
Reviu as palavras mágicas no Grande Livro Geológico e, no dia marcado, disse-as ao Nuteixo… e o tempo suspensou. Nem tão–pouco tremigotia o orvalho. Até que a velocidade dos dias começou a acelerar e a placa continental de África deslizou na nossa direcção, comprimindo as rochas.
O Castelo, ao sentir-se apertado, elevou-se em direcção à superfície. Começou a dobrar-se, a contorcer-se, a infiltrar-se pelos pontos de fraqueza das rochas como se fosse plasticina. E irrompeu mesmo entre os pés do Mago!, num pináculo afiadíssimo de gesso que ficou apenas a um palmo do chão.
O Mago começou a retirar a terra à volta. Seria realmente a cúpula de uma das torres do Castelo? Escavou, escavou e… encontrou o telhado. Entrou por uma janela. Passou pelo salão, por outras divisões, mas não encontrou o quarto da Princesa.
Voltou à superfície para procurar outros sinais. Aqui e ali afloravam pontas redondas das cúpulas. Não tinha dúvidas de que todo o enorme Castelo de Gesso subira: as camadas horizontais das rochas tinham rodado até à posição vertical. Numa delas, estava uma gruta.
Caminhou pela gruta e percebeu que era o acesso ao quarto principal. A porta, aberta, deixava ver a Princesa a dormir, numa cama de dossel, entre almofadas de salgema e lençóis de fluorite.
Quando o Mago entrou, rumores de sal. Beijou-a e pegou-lhe ao colo. Trouxe-a com todo o cuidado para que ela só visse branco. Primeiro o do gesso do Castelo, depois o do calcário do seu Palácio, como se o mundo fosse um imenso contínuo de tons da mesma cor. E assim rodeada, a Princesa despertou.
Viveram felizes no Palácio, onde em mil cuidados brancos se entretia o Mago para que o vislumbre de outra cor não adormecesse de novo a princesa… Até que um dia, para habituá-la a outras cores, a levou a atravessar o corredor entre dois pátios que tinha construido com as margas e os calcários impuros. Gradualmente, nesta passagem, a Princesa habituava os olhos, primeiro ao cor-de-rosa pálido, depois ao vermelho terroso.
E para dar ainda mais cores à Princesa, os Rios fizeram-lhe uma surpresa. Combinaram transportar areias e cascalhos das montanhas enrugadas pela aproximação de África e depositaram-nos nos vales. Destes depósitos, que ao consolidarem formaram conglomerados de mil cores, resolveram os Rios escolher um seixo especial: uma gema - lua incrustada na matriz da mais bela aurora. E ofereceram-na à Princesa.
Desde o dia em que a colocou no dedo como pedra preciosa do anel de gesso, a Princesa nunca mais deixou de olhar para esse pequeno céu estrelado que os Rios lhe ofereceram. Agora já pode ver os outros céus multicolores de Albufeira, a cidade que tem a seus pés um Castelo de Gesso.
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Concurso de Sismos, Terramotos e Abalos Menores
Um dia, Nino Surfonite, o chefe do bando das amonites, resolveu aparecer na Praia da Luz com a sua prancha de surf. Vinha visitar as meninas Nerineias nas suas conchas afunilongas de turbantes de vários andares. Mas, como sempre, pavoneava-se de vaidoso. Gabava-se que tinha acabado de surfar uma onda fabulosa e que só naquela praia é que não havia condições para fazer surf.
As meninas Nerineias deixavam-se mover, em uníssono, numa coreografia orquestrada pelo vai-e-vem das ondas. E apesar de estarem sempre a rir (não se sabe se das anedotas que as correntes marinhas lhes contam se das cócegas que lhes fazem ao passar) não gostam de ser gozadas. Por isso ficaram logo muito sérias e enterraram-se na areia.
A Nerineia – Mor aborreceu-se com tanta bazófia e disse ao chefe das amonites que em breve seria convidado para a onda mais fantástica que ele veria em toda a sua vida. Nino Surfonite saltou da sua concha e respondeu-lhe em tom de desafio
- Quero ver isso…quero ver isso…
Num instante a Nerineia – Mor convocou todas as outras Nerineias e explicou-lhe o seu plano:
- Meninas: vamos fazer um Concurso de Sismos, Terramotos e Abalos Menores. O concorrente que consiga estremecer tanto a praia que provoque uma onda gigante, ganha o concurso.
De boca em boca, não havia animal do Reino Meso que não soubesse da competição. E no dia marcado as equipas eram três: insectos, mamíferos e répteis.
A prova consistia em ir a correr da praia da Luz à praia da Salema. Ganharia quem provocasse o maior estremeção de terra e a maior onda.
Os mamíferos foram os primeiros. Eram poucos, e por mais que pulassem e saltassem nem sequer deu para inclui-los na categoria dos abalos menores.
Os insectos foram a seguir: agitaram as asas, rebolaram-se em terra. Milhões de patinhas fininhas pisaram o chão ao mesmo tempo. Conseguiram um abalo que apenas fracturou as arribas.
Quando foi a vez dos répteis fez-se um silêncio enorme: eram dinossáurios, tantos e tão grandes que a equipa ocupava todo o espaço da praia. Mal iniciaram a marcha tudo começou a tremer. As rochas desmoronaram ante o peso das passadas…. Bump…Bump…Bump… E lá iam eles, cada pé era um bombo a vibrar no areal… Bomp… Bomp…Bomp…
A Nerineia – Mor exultava ao ver o mar agitado, ondas gigantes a formarem-se… cada vez maiores…
Mas aconteceu uma coisa que não tinha sido prevista: começou a jorrar lava através de fendas à superfície. Acumulou-se, acumulou-se… e nasceu um vulcão.
Os dinossáurios continuaram impassíveis no Bump…Bump…Bump…e no Bomp… Bomp…Bomp… até que o seu passo sincopado cortou a meta!
Nesse instante, a somar ao espectáculo da rocha incandescente a brotar na praia, surgiu uma onda gigante ao longe. E a surfar, na crista do tsunami, estava Nino Surfonite e todas as outras amonites do Atlântico Sul…
O Caso do Oceano Remendado
O Mago P. M. C. Zóico está cheio de ideias fervilhantes. Acabou de chegar do Curso de Feitiços onde aprendeu novos truques que quer aplicar com o Nuteixo, a sua âncora mágica. Mas há um em especial que não lhe sai da cabeça: criar um oceano.
Criar um bom oceano é uma das mágicas mais complicadas que um Mago pode fazer. E se ele quer chegar a Rei dos Magos tem de o conseguir. Na verdade, ainda não domina completamente a técnica, mas mesmo assim vai tentar.
Pediu ao ornitogea de olhos quartzo para emitir o chamamento geral. Assim que a ave cantou, irrompeu um frenesi em toda a extensão do deserto vermelho. Nuvens de pó cresciam na direcção da casa do Mago. Sons de milhares de patas caminhavam apressados para ali. Das tocas saíram dinossáurios de todos os tamanhos; vermes desenterravam-se da areia; aves gigantes naviavam pelos ares. Multiplicavam-se os seres mais estrambólicos no calor que irradiava do chão.
Em poucos minutos colocaram-se num círculo, fixos de sorriso e de olhar. E o tempo suspensou. Possidónias abriram solenes alas. E o Mago disse:
- Caros amigos: vou oferecer ao Reino Meso um oceano.
E o vento enfunou o seu manto de penas grisantinas.
- Que bom! Que bom! Que bom! disseram os animais num burburinho.
- Vamos viver de novo para o mar!
- Assim já podemos refrescar-nos sem ter de esperar pela chuva!
- Assim já usamos as nossas conchas para surfar nas ondas!
E retiraram-se. Iam preparar as coisas para viver no litoral. Estavam com tanta pressa que o Mago nem teve tempo para lhes comunicar que poderia vir a precisar da ajuda deles, já que era a primeira vez que experimentava uma magia de um grau de dificuldade tão elevado…
Sozinho, concentrou-se e recapitulou a ordem dos sortilégios:
1º - fracturava as rochas bem no centro de Pangea, o continente único
2º - caíam as rochas ao longo destas fracturas, formando riftes
3º - o mar entrava para ocupar os vales formados …
e ficava com um oceano novinho em folha mesmo à porta de casa.
Olhou fixamente para o Nuteixo, moveu três vezes os braços de baixo para cima e disse:
- Nuteixo, Nuteixo
Zerpilofó, Zerpilofá
Partir o continente
Ao centro, ao centro
E entrar o mar
É p´ra já, é p´ra já!
Nisto, um estremeção. E outro tão forte que abriu um vulcão no grés. As Turritelas surgiram num corrupio, perdidas, para a frente e para trás
- Socorro! Socorro! Vem aí o fim do mundo!
Fracturava-se num ribombar todo o reino Meso. Não era só o centro, mas toda a extensão de Pangea! O mágico tinha exagerado! Naquele ritmo a terra afundava-se num instante e o planeta passava a ser apenas de água. Aflito, com o Nuteixo em riste, o Mago Zóico experimentou repetir a magia dizendo zerpilofé em vez de zerpilofó e zerpilofi em vez de zerpilofá… mas nada!!
Os dias eram passados a abanabalar e em qualquer momento um jorro de lava irrompia do chão. Até houve uns pólipos que montaram um negócio de apostas sobre o próximo local onde iria surgir um rio de pedra fundida.
Até que o Mago teve uma ideia: as fendas da periferia de Pangea poderiam ser fechadas com a ajuda de todos os animais do reino Meso. Era preciso cozer os rasgos laterais e deixar ficar apenas os do meio do continente.
E foi então que, uma vez mais, pediu ao ornitogea de olhos quartzo que emitisse o chamamento geral, e os animais vieram, saltando rios de lava e tempestades de fumos. Organizaram-se por famílias, e dentro em pouco, por mais rasgos que nascessem na bordadura de Pangea, mãos labiridosas reparavam os danos.
Batalhões de amonites bombeavam para fora a água do mar que entrava terra adentro. Enchiam as câmaras enroladas das suas conchas e borrifavam o ar. O Reino Meso estava transformado num enorme chuveiro. Dominavam como nenhum outro animal a técnica de flutuar a diferentes profundidades: eram elas que desciam às zonas mais profundas lideradas por Nino Surfonite.
Os dinossáurios mais fortes colocavam-se de um e do outro lado de rifts indesejáveis. Davam as mãos, fincavam os pés, puxavam as costas para trás e apertavam, apertavam... Fenda que eles tivessem debaixo d'olho nunca se abria! Nem permitiam qualquer movimento às falhas transformantes.
Multiplicavam-se famílias inteiras de Corais Hexagonais que remendavam os rasgões de Pangea. Construíram recifes que impediam o mar de galgar colinas, e se entrava um bocadinho, logo as lagunas evaporavam ao sol.
E o Oceano nasceu. Atlântico de seu nome. Abriu-se primeiro a norte, depois a sul. Apesar de ser ainda um mar muito novo, era como todos os bebés, cheio de energia. Por isso fartava-se de estrebuchar.
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O Silêncio das Pinças Desaparecidas
O Mago PMC Zóico sempre disse ao Piano:
- Tocas tão bem como o mar. Mas na Praia de Santa Luzia nasce a mais bela música do reino Ceno.
Por isso, o Piano pediu a quatro das suas teclas – ao Sol, ao Mi, ao Fá e ao Ré – para irem a essa praia gravar o som do mar. E nesse mesmo dia chamou a sua amiga Ondina para que as levasse.
Chegaram à tardinha. À frente delas todo o areal estava coberto de caranguejos com uma enorme pinça quase tão grande como o seu corpo. Estavam a fazer um espectáculo de luta pinça – a – pinça para uma assistência de caranguejas, sentadas nas rochas em redor.
As teclas camuflaram-se com a areia que se prendeu ao seu ébano texturado e em segundos estavam dispersas no meio do público. As caranguejas, como não tinham pinça gigante, percutiam as suas duas pequenas tenazes quando o seu herói tinha vantagem e, pelo contrário, se ele cedia, nem se moviam! E retinham a respiração.
Havia claques organizadas. De entre elas destacava-se a que torcia pelo caranguejo Bocas: enchiam os ares de:
“ tirititiri, tirititirá,
melhor que o Bocas,
…
não há.”
O árbitro era um polvo que soprava flautas - de - pan de búzios – beijinhos para dar início aos combates.
Cada luta acontecia entre vários caranguejos e todos guerreavam com todos. Batiam pinças com pinças e coreografavam a areia numa luta – dança - concerto.
slurp…piririnhuzsssss … (soavam as carapaças a roçarem umas nas outras)
shrimpintói…eshsesss sheeess…(faziam as pernas ao desenharem formas no chão)
Era um bailado. E mais que uma luta de caranguejos, era uma música de espantosa harmonia.
O Ré foi o primeiro a perceber que esta luta, que também era festa, estava na origem da música secreta da Praia de Santa Luzia.
Os sons das pinças dos caranguejos e da sua dança nas areias,
os apupos, os assobios e os slogans das caranguejas,
os apitos do polvo - árbitro
associavam-se à rebentação das ondas,
na mais perfeita melodia que uma tecla de piano, ainda que bemol ou sustenida, pudesse imaginar.
As teclas conseguiram encontrar um búzio CD – R 700 MB e captaram todo o concerto até Ondina as chamar para o regresso a casa.
Quando chegaram, o Piano pôs imediatamente o búzio a tocar:
- Que música maravilhosa! – disse em tom maior.
Todos os dias o Piano o ouvia, queria conseguir tocar assim. E tanto ouviu, tanto ouviu que o búzio se gastou.
Voltou a enviar as teclas à praia, no dorso da sua amiga Ondina.
Mas o areal estava uma confusão! Só se viam caranguejas a correr umas atrás das outras na areia e ninguém a assistir sobre as rochas. Não se vislumbrava uma única pinça gigante! Um único caranguejo! Só caranguejas!!
Arranhavam-se, escorregavam, gritavam,
… trrrrrelac….lac, zorrkt, zeerrrinck…
rrrink…zoing…richt…zaigrrá…choft….
- Mas onde estão os caranguejos das pinças gigantes? – estranharam as teclas.
Faziam movimentos loucos como quem quer lutar e não sabe como. O árbitro andava confuso e apitava tudo o que encontrava pelo caminho – algas, rochas, búzios de todas as cores e feitios….
Agora sim, era uma guerra, e o som que faziam era horrível! As teclas não podiam gravar aqueles ruídos iguais aos de uma harpa desafinada!!
Até que o Fá disse
- Olhem! Afinal há caranguejos! Confundem-se com as caranguejas porque só têm a pinça pequena. A pinça gigante desapareceu!
Era verdade, como se alguém lhes tivesse arrancado o seu único braço grande e possante.
As teclas ficaram imóveis, na praia, a assistir àquela correria, até que, exaustos, caranguejos e caranguejas pararam. Cada um foi para a sua galeria, escavada na areia. A praia ficou deserta.
As teclas olharam umas para as outras. Em silêncio. Silêncio. Absoluto silêncio.
- Tocas tão bem como o mar. Mas na Praia de Santa Luzia nasce a mais bela música do reino Ceno.
Por isso, o Piano pediu a quatro das suas teclas – ao Sol, ao Mi, ao Fá e ao Ré – para irem a essa praia gravar o som do mar. E nesse mesmo dia chamou a sua amiga Ondina para que as levasse.
Chegaram à tardinha. À frente delas todo o areal estava coberto de caranguejos com uma enorme pinça quase tão grande como o seu corpo. Estavam a fazer um espectáculo de luta pinça – a – pinça para uma assistência de caranguejas, sentadas nas rochas em redor.
As teclas camuflaram-se com a areia que se prendeu ao seu ébano texturado e em segundos estavam dispersas no meio do público. As caranguejas, como não tinham pinça gigante, percutiam as suas duas pequenas tenazes quando o seu herói tinha vantagem e, pelo contrário, se ele cedia, nem se moviam! E retinham a respiração.
Havia claques organizadas. De entre elas destacava-se a que torcia pelo caranguejo Bocas: enchiam os ares de:
“ tirititiri, tirititirá,
melhor que o Bocas,
…
não há.”
O árbitro era um polvo que soprava flautas - de - pan de búzios – beijinhos para dar início aos combates.
Cada luta acontecia entre vários caranguejos e todos guerreavam com todos. Batiam pinças com pinças e coreografavam a areia numa luta – dança - concerto.
slurp…piririnhuzsssss … (soavam as carapaças a roçarem umas nas outras)
shrimpintói…eshsesss sheeess…(faziam as pernas ao desenharem formas no chão)
Era um bailado. E mais que uma luta de caranguejos, era uma música de espantosa harmonia.
O Ré foi o primeiro a perceber que esta luta, que também era festa, estava na origem da música secreta da Praia de Santa Luzia.
Os sons das pinças dos caranguejos e da sua dança nas areias,
os apupos, os assobios e os slogans das caranguejas,
os apitos do polvo - árbitro
associavam-se à rebentação das ondas,
na mais perfeita melodia que uma tecla de piano, ainda que bemol ou sustenida, pudesse imaginar.
As teclas conseguiram encontrar um búzio CD – R 700 MB e captaram todo o concerto até Ondina as chamar para o regresso a casa.
Quando chegaram, o Piano pôs imediatamente o búzio a tocar:
- Que música maravilhosa! – disse em tom maior.
Todos os dias o Piano o ouvia, queria conseguir tocar assim. E tanto ouviu, tanto ouviu que o búzio se gastou.
Voltou a enviar as teclas à praia, no dorso da sua amiga Ondina.
Mas o areal estava uma confusão! Só se viam caranguejas a correr umas atrás das outras na areia e ninguém a assistir sobre as rochas. Não se vislumbrava uma única pinça gigante! Um único caranguejo! Só caranguejas!!
Arranhavam-se, escorregavam, gritavam,
… trrrrrelac….lac, zorrkt, zeerrrinck…
rrrink…zoing…richt…zaigrrá…choft….
- Mas onde estão os caranguejos das pinças gigantes? – estranharam as teclas.
Faziam movimentos loucos como quem quer lutar e não sabe como. O árbitro andava confuso e apitava tudo o que encontrava pelo caminho – algas, rochas, búzios de todas as cores e feitios….
Agora sim, era uma guerra, e o som que faziam era horrível! As teclas não podiam gravar aqueles ruídos iguais aos de uma harpa desafinada!!
Até que o Fá disse
- Olhem! Afinal há caranguejos! Confundem-se com as caranguejas porque só têm a pinça pequena. A pinça gigante desapareceu!
Era verdade, como se alguém lhes tivesse arrancado o seu único braço grande e possante.
As teclas ficaram imóveis, na praia, a assistir àquela correria, até que, exaustos, caranguejos e caranguejas pararam. Cada um foi para a sua galeria, escavada na areia. A praia ficou deserta.
As teclas olharam umas para as outras. Em silêncio. Silêncio. Absoluto silêncio.
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domingo, 17 de agosto de 2008
Lenda do Arraul da Ria Formosa
Era uma vez um rapaz chamado Arraul que vivia na Atlântida. O seu pai era o guarda-mor das colunas de Hércules, e Arraul ajudava-o a controlar a entrada e a saída dos navios no grande porto. Como adorava o mar, foi o primeiro a reparar que o nível das águas cada dia era mais alto. Disse ao seu pai, disse a toda a gente, e ninguém fez caso dele.
Até que um dia veio uma onda gigante e inundou todo o continente da Atlântida. Arraul foi o único sobrevivente. Foi arrastado para alto-mar e uma baleia engoliu-o.
A baleia foi apanhada por uma tempestade de levante e depois de tantas e tantas voltas enjoou e vomitou o Arraul ao largo do Algarve. Arraul só se recorda de abrir os olhos deitado de costas na areia da praia, no Sítio das Prainhas, o local onde nasceu Olhão. Ficou algum tempo estendido com a cabeça às reviravoltas, até que se levanta, olha para o mar e a sua primeira preocupação foi: tenho de proteger esta cidade de uma onda gigante como a que destruiu a Atlântida.
Olhou para trás de si, viu o Cerro de São Miguel e teve uma ideia brilhante: esgaravatar a areia do cerro, transportá-la e colocá-la frente à costa.
Foi isso mesmo que ele fez, e sem muito esforço porque Arraul era muito forte. Assim nasceram as ilhas – barreira da Barreta, Culatra, Armona, Tavira e Cabanas, que protegem a laguna e os canais da Ria Formosa.
Já mais descansado, Arraul pôde dedicar-se às actividades da pesca – até dizem que era ele a assar sardinhas no fundo da ria quando à superfície se via a água a borbulhar em círculos concêntricos.
Mas mesmo assim Arraul ainda não estava satisfeito. Pensava ele que se um dia viesse uma onda super-gigante, a protecção pelas ilhas não seria suficiente. Por isso resolveu escavar uma gruta no Cerro da Cabeça para as populações se esconderem, só que se perdeu no labirinto e nunca mais conseguiu sair.
Diz a lenda que Arraúl, na sua busca por encontrar saída, escavou e continua a escavar túneis por baixo da terra no Algarve inteiro e que, um dia, vai sair quando alguém bater no chão com o nó dos dedos e chamar "Arraúl!”
Já não há Meninos da Rua
Conceição ganhou o respeito dos Ranhosos quando curou o Skipy da esgana.
O Skipy era o cão de um dos bandos de meninos da rua da vila. Não eram meninos da rua no sentido que hoje damos, eles tinham casas e carinho, família, comida e iam à escola. Eram meninos que brincavam nas ruas da vila.
Jogavam à bola à tardinha, na calçada envolta de paredes de cal. Por vezes a bola batia num vespeiro alojado sob as telhas e aí era vê - los fugir, não das vespas, mas da avós de negro com as vassouras em riste...
Outras vezes penduravam-se "à boleia" nos camiões que subiam a ladeira da vila. Traziam os bolsos cheios de laranjas ou de figos que apanhavam enquanto não chegava o novo transporte de retorno a casa.
Uma vez encarrapitaram-se num camião que levava pequenas figurinhas de barro para a feira e trouxeram ofertas com fartura para as mães...que os obrigaram a ir devolver às tendas dos feirantes.
Conceição continuava num desfiar de recordações, sentada comigo numa esplanada. Era irmã de um dos Ranhosos e irmã do grupo desde a altura em que alimentou a conta - gotas seis gatinhos recém - nascidos, que os meninos encontraram jogados num latão do lixo.
Um dia, a cabana dos Ranhosos, construída sobre o ramo mais robusto de uma alfarrobeira do vale fronteiro à vila, foi alvo de um ataque com laranjas e tangerinas pelo grupo rival. Preparados para a eventualidade de uma ofensiva ao seu quartel - general, os Ranhosos atraíram-nos para perto do um canal de rega, zona de laranjais, onde tinham uma enorme pilha de "munições" preparadas para a batalha campal. Conseguiram capturar os sete elementos rivais, incluindo o chefe que levou uma monumental esfrega de laranjas podres na cabeça.
No primeiro dia de um Verão, o Skipy foi apanhado pelos funcionários da câmara e aprisionado, a aguardar o abate. Nessa noite, o gangue saiu à rua e arrombou as portas do canil municipal.
A maioria destes meninos, agora homens, já não mora na vila. A vila também já não é vila, é cidade. No sítio das antigas casas térreas cresceram blocos de apartamentos e os filhos dos Ranhosos que ficaram não brincam na rua, claro.
As mães poderiam dizer que é por causa dos carros ou até que têm medo dos raptos. Mas a verdade, diz Conceição, "é que os meninos não brincam nem na rua nem em casa porque não têm tempo. Antes mesmo de serem desmamados já viajam todos os dias a caminho do infantário ou de algum dos muitos "armazéns" de meninos que cuidam deles enquanto os Ranhosos e as suas legítimas se dedicam a cumprir os horários do emprego. Depois vem a escola. E com a escola as OTL, isto é, a fórmula institucional para guardar os meninos mais umas horas enquanto os Ranhosos não voltam dos empregos." É que, continua Conceição, "convém recordar, também já não há avós de negro. Também por isso se criaram actividades complementares para os sábados, dias em que os Ranhosos aproveitam para fazer uns biscates por fora para compor o orçamento, ou para ir à pesca (porque o domingo é dia de caça) enquanto as esposas se dedicam a dar um jeito à casa e a rever as telenovelas da semana. São as aulas de computadores, os ateliers de dança ou aulas de natação na piscina municipal...tudo isto é muito bom, mas não sobra tempo para brincar."
Conceição sente falta de ouvir a gritaria dos fins de tarde quando cada mãe chamava o seu filho do meio da rua, o mais alto que podia, para ele vir jantar. Mas isso era quando não havia telemóveis. Quando havia tempo para ser menino.
O Skipy era o cão de um dos bandos de meninos da rua da vila. Não eram meninos da rua no sentido que hoje damos, eles tinham casas e carinho, família, comida e iam à escola. Eram meninos que brincavam nas ruas da vila.
Jogavam à bola à tardinha, na calçada envolta de paredes de cal. Por vezes a bola batia num vespeiro alojado sob as telhas e aí era vê - los fugir, não das vespas, mas da avós de negro com as vassouras em riste...
Outras vezes penduravam-se "à boleia" nos camiões que subiam a ladeira da vila. Traziam os bolsos cheios de laranjas ou de figos que apanhavam enquanto não chegava o novo transporte de retorno a casa.
Uma vez encarrapitaram-se num camião que levava pequenas figurinhas de barro para a feira e trouxeram ofertas com fartura para as mães...que os obrigaram a ir devolver às tendas dos feirantes.
Conceição continuava num desfiar de recordações, sentada comigo numa esplanada. Era irmã de um dos Ranhosos e irmã do grupo desde a altura em que alimentou a conta - gotas seis gatinhos recém - nascidos, que os meninos encontraram jogados num latão do lixo.
Um dia, a cabana dos Ranhosos, construída sobre o ramo mais robusto de uma alfarrobeira do vale fronteiro à vila, foi alvo de um ataque com laranjas e tangerinas pelo grupo rival. Preparados para a eventualidade de uma ofensiva ao seu quartel - general, os Ranhosos atraíram-nos para perto do um canal de rega, zona de laranjais, onde tinham uma enorme pilha de "munições" preparadas para a batalha campal. Conseguiram capturar os sete elementos rivais, incluindo o chefe que levou uma monumental esfrega de laranjas podres na cabeça.
No primeiro dia de um Verão, o Skipy foi apanhado pelos funcionários da câmara e aprisionado, a aguardar o abate. Nessa noite, o gangue saiu à rua e arrombou as portas do canil municipal.
A maioria destes meninos, agora homens, já não mora na vila. A vila também já não é vila, é cidade. No sítio das antigas casas térreas cresceram blocos de apartamentos e os filhos dos Ranhosos que ficaram não brincam na rua, claro.
As mães poderiam dizer que é por causa dos carros ou até que têm medo dos raptos. Mas a verdade, diz Conceição, "é que os meninos não brincam nem na rua nem em casa porque não têm tempo. Antes mesmo de serem desmamados já viajam todos os dias a caminho do infantário ou de algum dos muitos "armazéns" de meninos que cuidam deles enquanto os Ranhosos e as suas legítimas se dedicam a cumprir os horários do emprego. Depois vem a escola. E com a escola as OTL, isto é, a fórmula institucional para guardar os meninos mais umas horas enquanto os Ranhosos não voltam dos empregos." É que, continua Conceição, "convém recordar, também já não há avós de negro. Também por isso se criaram actividades complementares para os sábados, dias em que os Ranhosos aproveitam para fazer uns biscates por fora para compor o orçamento, ou para ir à pesca (porque o domingo é dia de caça) enquanto as esposas se dedicam a dar um jeito à casa e a rever as telenovelas da semana. São as aulas de computadores, os ateliers de dança ou aulas de natação na piscina municipal...tudo isto é muito bom, mas não sobra tempo para brincar."
Conceição sente falta de ouvir a gritaria dos fins de tarde quando cada mãe chamava o seu filho do meio da rua, o mais alto que podia, para ele vir jantar. Mas isso era quando não havia telemóveis. Quando havia tempo para ser menino.
Menino Jesus Boneca
Maria Rosa comia castanhas cruas, mas a mãe não gostava porque fazia criar piolhos na cabeça. Jogava às escondidas para roubar uma mão cheia da mala da cozinha sem ninguém ver. Os frutos dos castanheiros que rodeavam a casa tornavam-se mais saborosos depois de colocados dentro da arca que o avô fizera.
Estaladiças, duras, frescas, cruas. Coziam-nas com erva - doce ou com arroz para o jantar; eram fritas em banha ou piladas e guisadas com feijão, mas cruas é que Maria Rosa gostava.
Duas borrefas na cimo do braço esquerdo doíam-lhe. Depois do dia de Todos os Santos e do magusto, fora com a mãe ao hospital de Portimão onde lhe deram a vacina. Sentia muita comichão, mas o médico disse que era sinal de que "tinha pegado".
Brincava Maria Rosa aos carreiros de formigas, à sombra do carvalho, quando a mãe a foi chamar para dar um pouco da aguadilha da sua vacina à Naicinha, filha dos parentes da aldeia do Alto, que tinham acabado de chegar. Traziam um aparo de metal e uma pena de escrever para tirarem líquido e introduzirem no braço da outra menina. Maria Rosa fugiu e começou a chorar. Só a convenceram com a promessa de uma boneca pela Feira Franca de Lagos, a vinte de Novembro.
Quando recebeu a sua boneca de papelão, vestida de xadrez e com as pernas unidas, Maria Rosa iniciou logo os preparativos para o baptizado e marcou a data para o Dia de Natal (Dezembro é o mês da festa e quando as estrelas são mais brilhantes).
Maria Rosa olhava à noite para os castanheiros e via astros no lugar das castanhas. Durante a festa as árvores vestiam-se de luz.
Nunca tinha ouvido falar de árvores de Natal ou do Pai Natal. Conhecia o menino Jesus, mas ele não lhe dava prendas, pelo contrário, era ela que fazia despontar trigo e centeio para lhe oferecer as "searinhas" quando na casa de fora se armasse o presépio em forma de altar.
Ajudou a colocar caixas de cartão umas sobre as outras e a cobrir o presépio com uma toalha de linho enfeitada de renda de nós. Teve o cuidado de deixar em cima a caixa onde tinha vindo a sua boneca da feira. Sobre ela cintilava a lamparina de azeite. As suas searas, com mais de um palmo, muito verdes, atapetavam os degraus de baixo.
A família de Maria Rosa não tinha Menino Jesus para colocar no presépio, contentava-se com as searas e a lamparina. Mas no Dia de Natal apareceu a boneca de papelão deitada numas palhinhas, junto à lamparina, vestida de branco, com uma cruz na testa feita a azeite.
Estava baptizada, a boneca de Maria Rosa era o Menino Jesus. E todos lhe rezaram o terço durante a época da festa até depois dos Reis.
O dia de Natal cheira a fatias douradas polvilhadas de açúcar e canela. Cheira a chouriça, morcela, toucinho. Não há mais dia nenhum no ano em que se beba café em tigelinhas de bojo redondo à medida das mãos. "Tudo sabe tão bem porque o jejum de véspera é uma purificação", assim pensa Maria Rosa.
Maria Rosa já existiu, revive aqui a partir de factos relatados por Glória Marreiros. Depois de a conhecer, como é que se revêem neste espírito os Natais de hoje?
Estaladiças, duras, frescas, cruas. Coziam-nas com erva - doce ou com arroz para o jantar; eram fritas em banha ou piladas e guisadas com feijão, mas cruas é que Maria Rosa gostava.
Duas borrefas na cimo do braço esquerdo doíam-lhe. Depois do dia de Todos os Santos e do magusto, fora com a mãe ao hospital de Portimão onde lhe deram a vacina. Sentia muita comichão, mas o médico disse que era sinal de que "tinha pegado".
Brincava Maria Rosa aos carreiros de formigas, à sombra do carvalho, quando a mãe a foi chamar para dar um pouco da aguadilha da sua vacina à Naicinha, filha dos parentes da aldeia do Alto, que tinham acabado de chegar. Traziam um aparo de metal e uma pena de escrever para tirarem líquido e introduzirem no braço da outra menina. Maria Rosa fugiu e começou a chorar. Só a convenceram com a promessa de uma boneca pela Feira Franca de Lagos, a vinte de Novembro.
Quando recebeu a sua boneca de papelão, vestida de xadrez e com as pernas unidas, Maria Rosa iniciou logo os preparativos para o baptizado e marcou a data para o Dia de Natal (Dezembro é o mês da festa e quando as estrelas são mais brilhantes).
Maria Rosa olhava à noite para os castanheiros e via astros no lugar das castanhas. Durante a festa as árvores vestiam-se de luz.
Nunca tinha ouvido falar de árvores de Natal ou do Pai Natal. Conhecia o menino Jesus, mas ele não lhe dava prendas, pelo contrário, era ela que fazia despontar trigo e centeio para lhe oferecer as "searinhas" quando na casa de fora se armasse o presépio em forma de altar.
Ajudou a colocar caixas de cartão umas sobre as outras e a cobrir o presépio com uma toalha de linho enfeitada de renda de nós. Teve o cuidado de deixar em cima a caixa onde tinha vindo a sua boneca da feira. Sobre ela cintilava a lamparina de azeite. As suas searas, com mais de um palmo, muito verdes, atapetavam os degraus de baixo.
A família de Maria Rosa não tinha Menino Jesus para colocar no presépio, contentava-se com as searas e a lamparina. Mas no Dia de Natal apareceu a boneca de papelão deitada numas palhinhas, junto à lamparina, vestida de branco, com uma cruz na testa feita a azeite.
Estava baptizada, a boneca de Maria Rosa era o Menino Jesus. E todos lhe rezaram o terço durante a época da festa até depois dos Reis.
O dia de Natal cheira a fatias douradas polvilhadas de açúcar e canela. Cheira a chouriça, morcela, toucinho. Não há mais dia nenhum no ano em que se beba café em tigelinhas de bojo redondo à medida das mãos. "Tudo sabe tão bem porque o jejum de véspera é uma purificação", assim pensa Maria Rosa.
Maria Rosa já existiu, revive aqui a partir de factos relatados por Glória Marreiros. Depois de a conhecer, como é que se revêem neste espírito os Natais de hoje?
Novas Vizinhanças
“Cada um tem o seu sentir, e eu cá não gosto de Lisboa”…Dona Hortênsia diz que na capital as pessoas entram em casa e trancam a porta. Vivem entre quatro paredes em prédios altos, onde não podem tocar a terra. Nas ruas andam muito depressa, sempre em frente e não se cumprimentam. Só gosta do rio enorme, a perder-se de vista.
Além de Lisboa, conhece também Portimão e Faro. É em Portimão que tem os filhos e teme o dia em que deixe de poder fazer o seu governo e vá morar com um deles, entre as tais quatro paredes. Dos doze casais, Dona Hortênsia é a única que resistiu ao apelo da cidade litoral mantendo-se na aldeia serrana.
Nasceu e toda a vida tem vivido na Picota, numa vertente virada a sul, com o mar lá em baixo. Semeia com o marido, como sempre semeou, um pedaço bom de terra e vai vender ao mercado da vila. Noutros tempos fazia esses nove quilómetros a pé, ir e vir dezoito, hoje já lhe custa. Apanha boleia ou vai de carro de praça. Mas já não precisa deslocar-se tanto, porque todas as semanas vem um camião comprar-lhe as cenouras, couves, alhos e o mais que esteja pronto. E também às sextas-feiras de manhã vem uma carrinha a fazer-lhe venda de peixe fresquinho.
Antes a serra era bastante povoada. Os primores hortícolas para Lisboa iam daqui e as feiras no litoral enchiam-se do aroma do pêro de Monchique. Ainda hoje se fala na batata e na cebola mas já quase não existem. As pessoas começaram a emigrar para Silves e sobretudo para Portimão.
Há cerca de dez, quinze anos, à serra começou a chegar gente nova. São na sua maioria jovens de países do norte da Europa que buscam um reencontro com a natureza, que professam filosofias de vida longe do consumismo. Dona Hortênsia tem outros vizinhos, as casas em volta da sua estão, uma vez mais, habitadas.
Quando lhe fui comprar ovos estava a Dona Hortênsia de volta das tomateiras. Deu-me algumas para eu dispor, duas alfaces de folhas viçosas e hortelã para chá, “que a de pôr na comida não é coisa que eu aprecie”.
Resolveu falar-me da vizinhança. “Antes éramos muitos, tínhamos escola primária, não havia canteiro que não estivesse tratado, nem casa sem a sua cabeça de gado. Hoje, sou eu e o meu marido rodeados de vizinhos estrangeiros em volta. Dou-me bem com eles, mas é outra lei que não é a nossa.”
Outra lei porquê?, perguntei. ”Querem mandar em tudo. Há uns tempos passou por aqui um rali de alguns trinta carros, com homens fardados de azul. Não sei quem organizou, devia ser com turistas. A vizinha estrangeira da frente veio falar comigo dizendo que ia fazer queixa à câmara. Eu respondi-lhe que se ali passavam é porque alguém os tinha autorizado. E ela insistia que ia tentar tudo para proibi-los de passar.
Uma outra vizinha veio dizer-me para eu soltar os meus cães. O que tem ela a ver com isso? Os cães à solta ainda se atiram a um carro e aleijam alguém. Além disso, vão-se embora e ficam para aí abandonados, sem comer nem beber.
Quem julgam que são?, vêm lá da terra deles mandar na nossa? É por isso que eu digo, cada qual no seu canto, e cada qual com a sua lei.”
Falou-me duns hippies que moram numa antiga destilaria de medronho. Têm água com fartura da fonte, mas não têm luz e as crianças andam mal vestidas, magras e sujas e têm o cabelo tão comprido que mal se lhes vê a cara.
Há outros: “ Ali naquela casa com um grande tanque de rega moram mais dois que fazem umas festas com a música mais alta de todos os tempos. Nessas noites não se dorme e durante o dia mal se pode passar na estrada porque vêm carros e roulottes de todo o lado, com formas e pinturas esquisitas.
Há uma semana, um casal veio viver para umas ruínas à saída da povoação. Já não passo por lá porque tenho medo dos cães deles, grandes e pretos, sempre a ladrarem. E fazem tudo às claras, é como se vivessem na rua.”
Dona Hortênsia confessou-me que tem saudades do convívio com gente de cá. No outro dia apertaram-lhe essas saudades e agarrou no telefone para falar com a irmã. Estava sem sinal, como sempre. “Basta fazer um ventinho de nada e fico sem telefone. Caem os postes e primeiro que os venham arranjar… “
Muita coisa mudou, vieram as estradas, os transportes, a electricidade, água canalizada e até o telefone, apesar das falhas. Chegaram um pouco tarde, já depois das gentes do lugar se terem ido embora.
Agora são outros que a pouco e pouco estão a repovoar os montes. Mas como se integram essas novas comunidades?
"Queria viver perto da vila de Monchique, não dentro", disse Dona Hortênsia. O que ela queria era mesmo viver onde sempre viveu, mas rodeada de gente da mesma lei.
Além de Lisboa, conhece também Portimão e Faro. É em Portimão que tem os filhos e teme o dia em que deixe de poder fazer o seu governo e vá morar com um deles, entre as tais quatro paredes. Dos doze casais, Dona Hortênsia é a única que resistiu ao apelo da cidade litoral mantendo-se na aldeia serrana.
Nasceu e toda a vida tem vivido na Picota, numa vertente virada a sul, com o mar lá em baixo. Semeia com o marido, como sempre semeou, um pedaço bom de terra e vai vender ao mercado da vila. Noutros tempos fazia esses nove quilómetros a pé, ir e vir dezoito, hoje já lhe custa. Apanha boleia ou vai de carro de praça. Mas já não precisa deslocar-se tanto, porque todas as semanas vem um camião comprar-lhe as cenouras, couves, alhos e o mais que esteja pronto. E também às sextas-feiras de manhã vem uma carrinha a fazer-lhe venda de peixe fresquinho.
Antes a serra era bastante povoada. Os primores hortícolas para Lisboa iam daqui e as feiras no litoral enchiam-se do aroma do pêro de Monchique. Ainda hoje se fala na batata e na cebola mas já quase não existem. As pessoas começaram a emigrar para Silves e sobretudo para Portimão.
Há cerca de dez, quinze anos, à serra começou a chegar gente nova. São na sua maioria jovens de países do norte da Europa que buscam um reencontro com a natureza, que professam filosofias de vida longe do consumismo. Dona Hortênsia tem outros vizinhos, as casas em volta da sua estão, uma vez mais, habitadas.
Quando lhe fui comprar ovos estava a Dona Hortênsia de volta das tomateiras. Deu-me algumas para eu dispor, duas alfaces de folhas viçosas e hortelã para chá, “que a de pôr na comida não é coisa que eu aprecie”.
Resolveu falar-me da vizinhança. “Antes éramos muitos, tínhamos escola primária, não havia canteiro que não estivesse tratado, nem casa sem a sua cabeça de gado. Hoje, sou eu e o meu marido rodeados de vizinhos estrangeiros em volta. Dou-me bem com eles, mas é outra lei que não é a nossa.”
Outra lei porquê?, perguntei. ”Querem mandar em tudo. Há uns tempos passou por aqui um rali de alguns trinta carros, com homens fardados de azul. Não sei quem organizou, devia ser com turistas. A vizinha estrangeira da frente veio falar comigo dizendo que ia fazer queixa à câmara. Eu respondi-lhe que se ali passavam é porque alguém os tinha autorizado. E ela insistia que ia tentar tudo para proibi-los de passar.
Uma outra vizinha veio dizer-me para eu soltar os meus cães. O que tem ela a ver com isso? Os cães à solta ainda se atiram a um carro e aleijam alguém. Além disso, vão-se embora e ficam para aí abandonados, sem comer nem beber.
Quem julgam que são?, vêm lá da terra deles mandar na nossa? É por isso que eu digo, cada qual no seu canto, e cada qual com a sua lei.”
Falou-me duns hippies que moram numa antiga destilaria de medronho. Têm água com fartura da fonte, mas não têm luz e as crianças andam mal vestidas, magras e sujas e têm o cabelo tão comprido que mal se lhes vê a cara.
Há outros: “ Ali naquela casa com um grande tanque de rega moram mais dois que fazem umas festas com a música mais alta de todos os tempos. Nessas noites não se dorme e durante o dia mal se pode passar na estrada porque vêm carros e roulottes de todo o lado, com formas e pinturas esquisitas.
Há uma semana, um casal veio viver para umas ruínas à saída da povoação. Já não passo por lá porque tenho medo dos cães deles, grandes e pretos, sempre a ladrarem. E fazem tudo às claras, é como se vivessem na rua.”
Dona Hortênsia confessou-me que tem saudades do convívio com gente de cá. No outro dia apertaram-lhe essas saudades e agarrou no telefone para falar com a irmã. Estava sem sinal, como sempre. “Basta fazer um ventinho de nada e fico sem telefone. Caem os postes e primeiro que os venham arranjar… “
Muita coisa mudou, vieram as estradas, os transportes, a electricidade, água canalizada e até o telefone, apesar das falhas. Chegaram um pouco tarde, já depois das gentes do lugar se terem ido embora.
Agora são outros que a pouco e pouco estão a repovoar os montes. Mas como se integram essas novas comunidades?
"Queria viver perto da vila de Monchique, não dentro", disse Dona Hortênsia. O que ela queria era mesmo viver onde sempre viveu, mas rodeada de gente da mesma lei.
Salazar fez o Lince
- Foi Salazar quem fez o lince.
- Como??!!
- Sim, foi Salazar com a Campanha do Trigo. Onde há trigo há coelhos, e os linces comem coelhos. Hoje, não há trigo, não há coelhos e não há lince.
O meu interlocutor no Café da Vila, em Monchique, tem esta forma muito sua de me dar os bons dias: com comentários muito pessoais põe-me ao corrente das últimas notícias da terra.
- Então não sabe? Esta tarde vêm aí todos para falar do lince.
À tarde lá fui à procura de "todos" nas instalações da Caixa de Crédito Agrícola .
A conferência sobre o Lince Ibérico, organizada pela associação “A Nossa Terra”, tinha como conferencistas Eduardo Gonçalves, jornalista e dirigente da associação SOS - Lince e Catarina Ferreira, bióloga do Instituto de Conservação da Natureza (ICN) que, durante toda a tarde, mantiveram animado debate com uma assistência de cerca de 30 pessoas, maioritariamente estrangeiros residentes na região.
Ficou-se a saber que, de acordo com os estudos realizados pelo ICN, presentemente não há registo de Lynx pardina em Portugal, ou de Gato Cravo, como é conhecido nas serras, apesar de a SOS - Lince ter registos de avistamentos recentes em Monchique, Caldeirão, Brejeira, Cercal e Silves.
Segundo Eduardo Gonçalves restam apenas 150 indivíduos em reservas naturais espanholas e o técnicos consideram que o lince está situação de pré-extinção. Por essa razão, é grande a urgência de investir na reprodução em cativeiro e posterior reinserção, paralelamente à recuperação de habitats. Em Espanha já se iniciaram investimentos neste sentido e em Portugal o Plano de Acção para a Conservação do Lince Ibérico, promovido pelo ICN com o apoio de diversas entidades e em fase de discussão pública, propõe o mesmo caminho e tem implementação para breve em diversas zonas do país, entre as quais a serra de Monchique.
À medida que ouvia estas informações, a frase jogada de rompante pelo meu amigo daquela manhã impunha-se mais e mais no meu pensamento.
De facto, até meados do século XX, Portugal era um país profundamente rural. A pressão das populações sobre os recursos era enorme, todo o bocadinho de terreno era arroteado, não havia esteva que não fosse colhida e sobreiro que não fosse podado para lenha. A mata andava limpa e o matagal mediterrânico limitava-se as vertentes mais declivosas.
Era este o habitat dos muitos linces que povoavam as nossas serras. Era este ecossistema, fortemente humanizado mas com um índice de povoamento baixo e uma amplitude muito grande de ocupação do território, onde se desenvolve a fauna cinegética , que suportava o lince: é nas manchas agrícolas que os coelhos se alimentam de erva e as perdizes de grão e, além disso, um predador como o lince precisa de espaço aberto para localizar e correr para as suas presas.
Foi este ecossistema que se desmoronou na segunda metade do século passado. O êxodo rural e a quebra de competitividade da agricultura artesanal abriram caminho à eucaliptização da serra. Que se saiba os coelhos e as perdizes não gostam de eucalipto. Então os linces viviam do quê se até as capoeiras desapareceram?!
Fará sentido falar da recuperação do lince quando não há perspectivas de recuperação do ecossistema ao qual pertencia?
Quando um ecossistema desaparece, as espécies têm duas vias possíveis: ou desaparecem com ele ou se readaptam. Há casos felizes, como as galinhas sultanas nos campos de golfe.
Na situação actual, em que o ecossistema dominante nada tem a ver com o seu habitat tradicional, terá o lince capacidade de se readaptar?
E se não tiver, alguém acredita que as políticas de ordenamento do território vão ser gizadas com a preocupação central de reconstituir o habitat do lince?
Já sei que é apanágio do homem pôr e dispôr da vida e do futuro das outras espécies. Ética e conservacionismo têm para mim uma relação conflituosa. E sempre que ouço falar de reservas e parques temáticos não consigo evitar a analogia a enlatados de natureza.
Começo a ficar um bocado saturada de ver os bichos servirem de pretexto para a criação de emprego ao abrigo de um dos tantos programas comunitários, ou de constituírem o chamariz para a facturação de um
zoo - parque qualquer. Por isso, se a única hipótese do lince for a reserva genética …
Prefiro saudar a memória digna desse gato capaz de furar uma pedra com uma mirada dos seus olhos amêndoa e mel, tal como o Deus grego Linceo. Os homens chamam-lhe lince e ainda lhe cobiçam o olhar.
- Como??!!
- Sim, foi Salazar com a Campanha do Trigo. Onde há trigo há coelhos, e os linces comem coelhos. Hoje, não há trigo, não há coelhos e não há lince.
O meu interlocutor no Café da Vila, em Monchique, tem esta forma muito sua de me dar os bons dias: com comentários muito pessoais põe-me ao corrente das últimas notícias da terra.
- Então não sabe? Esta tarde vêm aí todos para falar do lince.
À tarde lá fui à procura de "todos" nas instalações da Caixa de Crédito Agrícola .
A conferência sobre o Lince Ibérico, organizada pela associação “A Nossa Terra”, tinha como conferencistas Eduardo Gonçalves, jornalista e dirigente da associação SOS - Lince e Catarina Ferreira, bióloga do Instituto de Conservação da Natureza (ICN) que, durante toda a tarde, mantiveram animado debate com uma assistência de cerca de 30 pessoas, maioritariamente estrangeiros residentes na região.
Ficou-se a saber que, de acordo com os estudos realizados pelo ICN, presentemente não há registo de Lynx pardina em Portugal, ou de Gato Cravo, como é conhecido nas serras, apesar de a SOS - Lince ter registos de avistamentos recentes em Monchique, Caldeirão, Brejeira, Cercal e Silves.
Segundo Eduardo Gonçalves restam apenas 150 indivíduos em reservas naturais espanholas e o técnicos consideram que o lince está situação de pré-extinção. Por essa razão, é grande a urgência de investir na reprodução em cativeiro e posterior reinserção, paralelamente à recuperação de habitats. Em Espanha já se iniciaram investimentos neste sentido e em Portugal o Plano de Acção para a Conservação do Lince Ibérico, promovido pelo ICN com o apoio de diversas entidades e em fase de discussão pública, propõe o mesmo caminho e tem implementação para breve em diversas zonas do país, entre as quais a serra de Monchique.
À medida que ouvia estas informações, a frase jogada de rompante pelo meu amigo daquela manhã impunha-se mais e mais no meu pensamento.
De facto, até meados do século XX, Portugal era um país profundamente rural. A pressão das populações sobre os recursos era enorme, todo o bocadinho de terreno era arroteado, não havia esteva que não fosse colhida e sobreiro que não fosse podado para lenha. A mata andava limpa e o matagal mediterrânico limitava-se as vertentes mais declivosas.
Era este o habitat dos muitos linces que povoavam as nossas serras. Era este ecossistema, fortemente humanizado mas com um índice de povoamento baixo e uma amplitude muito grande de ocupação do território, onde se desenvolve a fauna cinegética , que suportava o lince: é nas manchas agrícolas que os coelhos se alimentam de erva e as perdizes de grão e, além disso, um predador como o lince precisa de espaço aberto para localizar e correr para as suas presas.
Foi este ecossistema que se desmoronou na segunda metade do século passado. O êxodo rural e a quebra de competitividade da agricultura artesanal abriram caminho à eucaliptização da serra. Que se saiba os coelhos e as perdizes não gostam de eucalipto. Então os linces viviam do quê se até as capoeiras desapareceram?!
Fará sentido falar da recuperação do lince quando não há perspectivas de recuperação do ecossistema ao qual pertencia?
Quando um ecossistema desaparece, as espécies têm duas vias possíveis: ou desaparecem com ele ou se readaptam. Há casos felizes, como as galinhas sultanas nos campos de golfe.
Na situação actual, em que o ecossistema dominante nada tem a ver com o seu habitat tradicional, terá o lince capacidade de se readaptar?
E se não tiver, alguém acredita que as políticas de ordenamento do território vão ser gizadas com a preocupação central de reconstituir o habitat do lince?
Já sei que é apanágio do homem pôr e dispôr da vida e do futuro das outras espécies. Ética e conservacionismo têm para mim uma relação conflituosa. E sempre que ouço falar de reservas e parques temáticos não consigo evitar a analogia a enlatados de natureza.
Começo a ficar um bocado saturada de ver os bichos servirem de pretexto para a criação de emprego ao abrigo de um dos tantos programas comunitários, ou de constituírem o chamariz para a facturação de um
zoo - parque qualquer. Por isso, se a única hipótese do lince for a reserva genética …
Prefiro saudar a memória digna desse gato capaz de furar uma pedra com uma mirada dos seus olhos amêndoa e mel, tal como o Deus grego Linceo. Os homens chamam-lhe lince e ainda lhe cobiçam o olhar.
Com a Cabeça entre as Orelhas
“Era Setembro. Vinha o fogo. Divino.
Imprudente.
Crescia do vale, empurrado pelo vento.
Vinha para cá. Engolir vidas.
O fogo vinha acrescentar-se de nós.
(Ganha quem conhece as fraquezas do inimigo.
Ganha quem não abandona o campo de batalha.)
Limpámos a terra (nossa e dos vizinhos),
tínhamos água, muita água,
um tractor, uma bomba d'água.
E calma.
Quando veio o fogo não tinha onde lavrar,
não tinha onde comer,
e virou para o outro lado.
Nós ficámos. Nós.
As casas. As árvores. A horta.
Os animais.
Verde entre cinzas.
Entre as mortes, vidas.
Estávamos à espera dele
desde que tentou pela primeira vez.
Era Agosto.
Não chegou cá. Mas sabíamos que podia voltar.
Em Setembro estávamos preparados.
Em Setembro vencemos."
Esperava encontrar árvores e horta ardidas, a cal branca da casa maculada pela marca do fogo. Mas não. Encontrei-os num oásis verde.
À volta tudo era negro. Desolados, paus de telefone jaziam ainda suspensos dos fios.
Lama de fuligem e carvão era tudo o que os olhos abarcavam num raio de quilómetros.
Comovi-me ao chegar porque pelo caminho construíra o pior dos cenários.
Imprudente.
Crescia do vale, empurrado pelo vento.
Vinha para cá. Engolir vidas.
O fogo vinha acrescentar-se de nós.
(Ganha quem conhece as fraquezas do inimigo.
Ganha quem não abandona o campo de batalha.)
Limpámos a terra (nossa e dos vizinhos),
tínhamos água, muita água,
um tractor, uma bomba d'água.
E calma.
Quando veio o fogo não tinha onde lavrar,
não tinha onde comer,
e virou para o outro lado.
Nós ficámos. Nós.
As casas. As árvores. A horta.
Os animais.
Verde entre cinzas.
Entre as mortes, vidas.
Estávamos à espera dele
desde que tentou pela primeira vez.
Era Agosto.
Não chegou cá. Mas sabíamos que podia voltar.
Em Setembro estávamos preparados.
Em Setembro vencemos."
Esperava encontrar árvores e horta ardidas, a cal branca da casa maculada pela marca do fogo. Mas não. Encontrei-os num oásis verde.
À volta tudo era negro. Desolados, paus de telefone jaziam ainda suspensos dos fios.
Lama de fuligem e carvão era tudo o que os olhos abarcavam num raio de quilómetros.
Comovi-me ao chegar porque pelo caminho construíra o pior dos cenários.
Os vizinhos vieram perguntar-lhes como poderiam agradecer o facto de lhes terem salvo as sobreiras. "Limpando as terras", disseram-lhes. Quanto à mão criminosa: "O mal do fogo não é começar, é não haver condições para o podermos parar. Se as terras e as casas estivessem habitadas, o fogo não lhes pegava. Mas assim ... as balsas são como um rastilho...Os vizinhos só vêm à serra para cortar os eucaliptos ou retirar a cortiça de dez em dez anos; depois, com o dinheiro, já podem trocar de carro mas não reinvestem um euro nos terrenos."
E continuaram: "Os políticos, em vez de proclamarem o fogo como uma fatalidade criminosa, deviam combatê-lo travando o crescimento do litoral. A solução para os fogos é parar a sangria do interior. É manter abertas as escolas, os postos da EDP, as pequenas estações de correios. É manter vivas as aldeias e os montes das serras. "
Os meus amigos contaram-me que têm recebido visitas de técnicos da câmara, do Ministério do Ambiente, do Ministério da Agricultura e de outras instituições. Têm andado a fazer o levantamento dos prejuízos. Dizem que é para depois fazerem um plano de ordenamento que evite futuros fogos. Mas vêm cada um por si. Por isso é que lhes fazem sempre as mesmas perguntas.
Volto para casa. Não há mais nada para arder... Mas reparo que os eucaliptos, os medronheiros, os carvalhos, os sobreiros já estão a despontar. A natureza recompõe-se. De aqui a cinco anos, se o fogo voltar, já terá por onde arder. E na eventualidade de novo incêndio, irão, uma vez mais, chover inquéritos para apurar responsabilidades pelo insucesso no combate aos fogos. E os técnicos, nessa altura ao serviço de novas entidades com as mesmíssimas funções, voltarão ao campo para tentar perceber porque é que tão profundas remodelações orgânicas na orgânica da administração pública, não conseguiram alterar esta triste sina de Verão.
Portanto, de aqui a cinco anos, cá estaremos. Com a cabeça entre as orelhas.
Mas afinal quem é Deus?
A vida da minha avó foi árdua mas simples. No seu tempo vivia-se mourejando de sol a sol. Não havia vagar para as grandes questões existenciais que hoje nos ocupam, mas também a verdade é que elas estavam então naturalmente resolvidas pela fé cristã.
Durante muito tempo a graça de Deus foi providencial para explicar o que se entendia, e o que não se entendia pertencia ao vasto domínio dos mistérios de Deus.
Este modo de vida tem vindo a desmoronar-se à medida que os homens têm avançado nos domínios da ciência e da técnica, desvendando um por um os grandes mistérios da criação e transformando em brincadeiras de crianças qualquer dos grandes trabalhos de Hércules.
Desviam-se rios e derrubam-se montanhas com a mesma facilidade com que se trocam corações. E quando dentro de alguns anos se clonarem pessoas como quem reproduz cogumelos numa estufa fria, não será de estranhar que se façam voos turísticos à lua...e eu quero ir!
A realidade suplanta a ficção. E a realidade é um processo liderado pelo Homem. Mas atribuir a toda a Humanidade os avanços conseguidos deve ser a atitude de modéstia mais hipócrita da nossa civilização, porque tem sido o ocidente cristão o motor de todo este processo.
Já há vários séculos que se instalou na Europa a convicção de que o mundo se deveria organizar para servir um só Deus, e ao servi-Lo, servir-nos a nós enquanto seus directos e dilectos procuradores. As cruzadas foram o primeiro grande sinal deste sentir e desta forma de estar que usa o cristianismo como testa de ferro numa operação de marketing inigualável...Cristo e a cruz funcionaram como um "abre-te sésamo" de novas fronteiras e de novas fontes de riqueza. Foi assim que as catedrais de Sevilha foram construídas: com o ouro dos Incas, sob o signo de Deus.
No entanto, houve quem resistisse à mensagem, e desde então o mundo dividiu-se em dois: o ocidente e a sua esfera de influência, reino de Deus, e o resto, terra de infiéis, pátria de terroristas.
Ao tomar nas suas mãos as funções divinas o Homem assume-se igual a Deus e resolve o enigma: Deus é o Homem.
Mas Deus não é um Homem qualquer: Deus é o Homem Ocidental.
A nossa civilização substituiu-se a Deus, tem um sentido missionário de levar a salvação aos outros. Começámos com a libertação da Terra Santa e nunca mais parámos.
É este espírito de missão que nos legitima a impormo-nos aos outros como se de uma questão de sobrevivência se tratasse.
Somos intocáveis. Acima da crítica. Iluminados pela razão.
Levamos a guerra e a paz, dominamos a agricultura, nós é que sabemos como devem os outros comer, vestir-se e ter fome.
Regulamos o destino dos outros homens, impondo-lhes, por exemplo, sistemas políticos ideais, como a democracia. E já não há mistérios.
Bom...não é bem assim: continuamos sem saber onde está o Bin Laden.Não compareceu à intervenção cirúrgica que lhe tinha sido marcada pelo sistema de saúde norte-americano. Talvez tenha preferido as medicinas alternativas, como beber uns "xás" numa clínica serrana.
O que se fez em nome de Deus? O que se faz hoje em nome do Homem?
A minha avó não acreditava que o homem tivesse ido à lua, porque "voar é para os pássaros". Usava um lenço negro na cabeça como parte do seu luto carregado desde que o meu avô morreu. A minha avó entenderia porque usam "burka" as muçulmanas. Afinal, até há bem pouco tempo, também fomos terra de infiéis, e é provável que muitos deles tenham ficado por cá...
O Funeral
Pesados de negro, como se tivessem regressado de longínquos tempos, caminhavam pelas ruas da vila apertada e branca.
Caminhavam lentamente, envoltos na poeira do caminho.
Havia dignidade no silêncio dos passos daquela marcha sincopada, numa cadência de homenagem sentida que dir-se-ia regida por uma música ausente ouvida por todos.
Sem saber como, já fazia também parte daquele pó ancestral, pelo menos assim o entendi quando comecei a ouvir o Coro dos Hebreus de Verdi.
Ouvia risos e as casas brancas da rua esfumavam-se. A multidão era-me cada vez mais familiar, e sons, imagens e cheiros do meu passado tomavam-se presentes. Apareciam – me intermitentes enquanto a marcha prosseguia ao som do canto, agora mais forte.
Caminhava e sentia-me imóvel. Cada um dos outros era meu conhecido, sorria-me, falava-me, mas ouvia-os como a um eco que não conseguia perceber.
Quem é esta gente? O que fazem aqui? O que faço eu aqui no meio deste cortejo de almas andantes que se afastam? Que me deixam chegar à frente onde caminho ao lado do enorme ataúde branco onde jaz uma mulher muito velha, de longos cabelos cinza, com um sorriso igual ao meu??!!
O pânico prendeu-me o olhar ao futuro de mim própria. Queria fugir dali, mas só conseguia ler, repetidamente, o slogan impresso em letras doiradas sobre o fundo negro da carroçaria: “Agência Funerária Ramiro – tudo para o seu funeral”. “Agência Funerária Ramiro – tudo para o seu funeral”. “Agência Funerária Ramiro – tudo para o seu funeral”, mas agora impresso sobre a parede encardida que uma senhora gorda acabava de limpar com uma escova de piaçaba.
O recorte das casas brancas ressurgia nítido e na rua deserta ouvi o Sr Ramiro:
- Que tal? Gostou da nossa nova propaganda inter-activa? Estamos ainda numa fase experimental, sabe…precisamos da sua opinião…Conte, conte lá…Gostou do seu funeral?
sábado, 16 de agosto de 2008
17ª Bola
Desde Setembro. Bastaram sete meses para só restar eu. Os outros foram-se em estilhaços.
Hoje, quinta – feira, mais uma vez, lá vai ela. Pele cheia de sinais castanhos e piercing no lábio superior. Traja calções e botas de camurça preta. Sentou-se no lugar habitual para tomar café. A sombra do pinheiro hoje não a tapa, ajeita-se para escapar ao sol.
Tem enrolado ao pescoço um colar de contas de madeira clara, pequenas, intercaladas por bolas grandes. São ao todo 16. Uma por cada jogo. Uma por cada vidro. Hoje ao fim da tarde já serão 17.
Tem ao lado, sobre o tampo de plástico o velho dossier de lombada vermelha a abarrotar de folhas. Senta-se, reclinada para trás, com a barriga proeminente. Come um bolo em grandes dentadas e fala, de boca cheia, com as três colegas. Banalidades. Ansiedades para a final entre a Física e as Engenharias.
Sob o pinheiro- baliza, o que está mais perto do centro do pátio, está um casal. Já chegaram há algum tempo - vieram mais cedo para o jogo. Ele, vestido de negro. Ela, loura, gorda, camisola com rosas estampadas. Estão virados um para o outro, sentados nos dois bancos corridos que com a mesa rectangular ao centro fazem uma só peça. Todo o conjunto pende para o lado dela. A areia que inicia o pinhal e afofa as bolas cedeu.
O pátio é de paralelepípedos irregulares de calcário. Tem um círculo de 8 metros de raio feito em tijolo – burro cujo centro é marcado por um cano largo e tosco, enterrado na vertical e com a ponta enrolada num trapo branco, velho e sujo. Tem passado rasteiras a muitos jogadores – chamam-lhe a mangueira e é o centro formal do campo. A assistência dispõe-se em volta, sentada até que os últimos da fila colem as costas às paredes dos edifícios.
Começam já a chegar alunos das outras faculdades e a entrar no pátio pelo túnel do meu edifício, de fachada redonda. São poucos os que vêm pela entrada do pinhal em frente, protegida por quatro pinheiros mansos da mesma altura dos prédios. São pinheiros podados de forma a terem o primeiro ramo à altura de um homem.
Os jogadores estão já em campo – engenharias de azul, física de vermelho. Ela dá início ao jogo, deu início a todos os jogos desde que foi para a associação académica. Foi ela que inventou a moda dos estilhaços de vidro das janelas dos laboratórios. Hoje sou eu. Já não vou ter tempo de vê-la colocar a 17ª bola no colar de madeira. Está a fazer pontaria.
sexta-feira, 15 de agosto de 2008
A Princesa Felícia
Era uma vez uma princesa chamada Felícia. Numa linda manhã, a princesa acordou, foi ver-se ao espelho e… qual não foi o seu espanto quando percebeu que estava transformada numa rã!
Saiu do palácio para que ninguém a visse e foi esconder-se na floresta.
Estava a pensar porque motivo lhe teria acontecido isto, quando se aproximou dela a Tartaruga Buga – Buga que lhe disse:
- Princesa Felícia!
- Como sabes quem eu sou?
- Sei porque estava a passear no parapeito da tua janela quando a Bruxa Uxa – Uxa entrou no teu quarto e transformou-te numa rã, enquanto dormias. A única maneira que tens de voltar a ser uma princesa é quando o Príncipe te der um beijo.
- Boa! Mas onde está o Príncipe?
- A bruxa também o transformou num animal do bosque, só que ninguém sabe que animal é….
E a Tartaruga Buga-Buga foi-se embora, no seu passo vagaroso.
A princesa ficou por momentos muito pensativa até que teve uma ideia:
- Vou cantar tanto e tão bem que não haverá animal do bosque que não me queira dar um beijo!
E começou a cantar:
- Eu sou a rãzinha, linda rãzinha
que quer dançar uma valsinha (bis)
Não há rãzinha mais arranjadinha,
formosa e bonitinha (bis)
Cantou a tarde inteira até que se aproximou dela a Lagarta-dos-Mil-Pés.
- Rãzinha, que canto tão lindo! Dás-me a honra de uma dança?
- Sim, com tantos pés… tentarei não trocar o passo…
E dançaram uma valsa tão linda que no fim a lagarta lhe quis dar um beijo.
A rãzinha preparou-se: fechou os olhos, encheu de ar as bochechas, e…..
- Chuack!!
Que grande beijinho lhe deu a Lagarta-dos-Mil-Pés!
Foi então que a rã, ainda de olhos fechados, estremeceu:
- Será que já sou outra vez uma princesa? Será que já sou outra vez uma princesa? Será que já sou outra vez uma princesa?
E enquanto dizia isto passava as mãos pelo seu corpo para verificar a transformação.
Abriu lentamente os olhos e… ainda era uma rã.
Afinal, a Lagarta-dos-Mil-Pés não era o seu príncipe encantado.
Ficou tão triste que a Lagarta achou que a rã não gostava dela e foi-se embora dali em mil passos miudinhos.
E a rã começou de novo a cantar:
- Eu sou a rãzinha, linda rãzinha
que quer dançar uma valsinha (bis)
Não há rãzinha mais arranjadinha,
formosa e bonitinha (bis)
Até que se aproximou o Dragão das Tulipas, a lançar fogo à direita e à esquerda:
- Rãzinha, que canto tão lindo! Trouxe para te oferecer a mais bela tulipa do meu jardim. Toma, é para ti!
- Ai que medo! Tu és um verdadeiro dragão que deita fogo pela boca!
E o dragão riu-se em tulipas de fogo.
A rã aproximou-se dele com cautela, aceitou a flor, cheirou-a, e adorou aquele perfume maravilhoso! Vendo-a com uma cara tão feliz, o Dragão das Tulipas, apaixonado, quis-lhe dar um beijo.
A rãzinha preparou-se: fechou os olhos, encheu de ar as bochechas, encheu, encheu….. e….
- Chuuack!!
Que enorme beijinho lhe deu o Dragão das Tulipas.
Foi então que a rã, ainda de olhos fechados, estremeceu:
- Será que já sou outra vez uma princesa? Será que já sou outra vez uma princesa? Será que já sou outra vez uma princesa?
E enquanto dizia isto passava as mãos pelo seu corpo para verificar a transformação.
Abriu lentamente os olhos e… ainda era uma rã.
Afinal, o Dragão das Tulipas não era o seu príncipe encantado.
Ficou tão triste que o Dragão achou que a rã não gostava dele e foi-se embora voando em mil rajadas de fogo.
E a rã começou de novo a cantar:
- Eu sou a rãzinha, linda rãzinha
que quer dançar uma valsinha (bis)
Não há rãzinha mais arranjadinha,
formosa e bonitinha (bis)
Até que se aproximou Croco, o Crocodilo, que varria tudo ao passar com a sua cauda gigante.
- Rãzinha, que canto tão lindo! Estava no meu lago a fazer ginástica quando ouvi o teu canto.
- Ai que medo! Ai que medo! És tão grande!
A rã já se via na cova de um dos seus dentes… mas quem sabe se não era ele o Príncipe? Tinha de arriscar.
- Não tenhas receio, eu só quero ouvir-te cantar… será que te posso dar um beijinho?
E começou a esboçar um beijo com as suas enormes mandíbulas.
A Rãzinha saltou para trás a tremer…, mas nem tanto, é que, na verdade, até achava que Croco era cinco estrelas, atleta, de um verde muita louco! Encheu-se de coragem, fechou os olhos, encheu de ar as bochechas, encheu, encheu….. encheu, encheu… encheu mais e mais … e mais….e…
- Chuuuack!!
Que colossal beijinho lhe deu o Crocodilo.
Foi então que a rã, ainda de olhos fechados, estremeceu:
- Será que já sou outra vez uma princesa? Será que já sou outra vez uma princesa? Será que já sou outra vez uma princesa?
E enquanto dizia isto passava as mãos pelo seu corpo para verificar a transformação.
Abriu lentamente os olhos e… era de novo a Princesa Felícia!!!
- Viva!!! Já sou eu de novo, eu, a Princesa Felícia!!! Que bom!! Que bom!!!
Mas a maior surpresa foi quando viu que Croco já não era um crocodilo, mas o mais belo Príncipe, o homem com que sempre sonhara…
O Príncipe logo ali pediu a Princesa Felícia em casamento. A boda foi a mais espectacular de todos os tempos, com valsas, polkas e mazurcas dançadas pela Tartaruga Buga – Buga, pelo Dragão das Tulipas e pelas rãs e crocodilos amigos do Príncipe e da Princesa.
A Fuga de Dois Pensamentos de Barnabé
Barnabé colecciona pensamentos.
Não lhes conhece a forma, nem a cor.
Sabe que são muitos e que vivem abarrotados nos armários da sua cabeça.
Tanto colecciona que não fala. Se falasse não era coleccionador de pensamentos mas era sim um livro, que é uma colectânea de palavras – ora esta é uma das reflexões mais conhecidas dos escaparates de Barnabé.
Barnabé tem três botões no seu colarinho alto. E um dos considerandos que tem mais vezes repetidos na sua colecção é “Tenho de falar com os meus botões”.
Um dia resolveu conversar com o botão vermelho. À sua primeira palavra, fugiu-lhe um pensamento grande como um narguilé! Era o pensamento vermelho e doce da última vez que comeu melancia!
Que tentação! Conhecer os seus pensamentos! Já sabia o segredo! Diminuía a sua colecção, mas… só mais um!
Mal abriu a boca para falar com o botão azul e… fugiu-lhe outro pensamento, roliço como uma gota! Era o pensamento do banho azul gelado no mar de Saricoté!
E o botão verde? Barnabé ainda nem tinha articulado bem a primeira sílaba e já….
Os Bonecos de Dom Sigismundo
Hoje é o dia escolhido pelos bonecos de Dom Sigismundo para atacar a sua enorme boca de hipopótamo com três dentes. Levantam lentamente a tampa da mala, sempre aberta, e saltam para fora levando escadas, cordas e apoios de escalada para a subida até ao nariz. Nove deles transportam botes de borracha insufláveis para navegarem na saliva.
O urso de peluche vai mais carregado porque pensa construir uma moradia frente ao pescoço e pouco depois da língua, quase no fim do queixo. Não que considere que aí seja um lugar sossegado - não é - mas está protegido dos jactos de comida que são disparados através dos buracos das gengivas quando Dom Sigismundo mastiga.
Quem comanda as operações é uma ânfora romana que bale. Dom Sigismundo encontrou-a numa das suas deambulações em busca de objectos perdidos sobre as areias dragadas do rio Deará.
Dom Sigismundo havia transformado esta ânfora num roberto, tal como o urso de peluche e todos os outros, que começam por ser objectos encontrados e acabam como actores dos espectáculos que Dom Sigismundo apresenta nas feiras do sul.
À ânfora romana que bale chamou Maria Forelha, intrigado com o facto de saírem da sua boca sons de ovelha e não sons de mar, tal como nos búzios. Até mesmo podiam sair sons do garum, quando pés de homens calcam o peixe salgado com especiarias, ou o som do vento nos olivais guardado no corpo líquido luzente do azeite. Agora mééééé...méééé...! Não sabia explicar porquê, já que as ânforas não guardam carne... Quando a encostava ao ouvido era como se um rebanho de ovelhas marinhas entrasse pela casa adentro!
Dom Sigismundo colou lã virgem com um palmo de altura em torno das pegas de Maria Forelha: assim nasceu o seu farto cabelo branco, com madeixas castanhas. Vestiu o seu ventre bojudo de ânfora madura com uma peúga tricotada com sete agulhas pela sua avó e fez-lhe os olhos com dois botões castanhos dourados do seu colete. Recortou uma boca carnuda e grande do veludo carmim do cortinado da sala.
Se Dom Sigismundo tivesse paciência e ouvisse mais demoradamente o balir de Maria Forelha, saberia que os sons, aos poucos e poucos, se transformavam numa melodia e numa história.
Quando Dom Sigismundo adormecia, Maria Forelha entoava baixinho uma canção de embalar dentro da mala, debaixo da cama, e contava histórias aos outros robertos.
quinta-feira, 14 de agosto de 2008
Poema da Arrifana
Espero,
escondido e ancorado em pleno mar.
Enraízo,
leixão comido pelo vento e marés.
Voo,
para lugar nenhum.
Porque se acentuam as ondas
em tons gradados de azul?
Pairam gaivotas ofuscam
o bote na roda das bóias brancas .
A proa alta embala as ondas.
Escondido e ancorado em pleno mar.
Separado da deriva por um cabo.
Unido a um destino por um cabo.
Uma vaga de anil solta as amarras.
Voo,
lenço de seda roubado pelo Levante,
o bote,
caminho das ondas para a praia.
Senhoras Aristocráticas na Plateia do Circo
o cuspidor de vírgulas e triângulos
equilibrado
sobre o Nemo e o Lagarto do Egipto
exibe-se
para as senhoras aristocráticas
o palhaço rico
oferece
o seu número de malabarismo
vestido
com um escudo de abóbora
Moby Dick e a Branca de Neve
dirigem
a fanfarra de micróbios
na palma da mão
os perdigotos saltimbancos
sobem
no rino-carrocel
até aos acrobatas
nisto
o carrinho de circo
sai
descomandado
em direcção à plateia
das senhoras aristocráticas
então
o cuspidor de vírgulas e triângulos
o palhaço rico
Moby Dick e a Branca de Neve
os perdigotos saltimbancos
e os acrobatas
assistem
ao choque
do carrinho de circo
com estas ditas
senhoras
e aristocráticas
(as senhoras)
em tom agreste
começam a levitar
anjos
as senhoras
são agora anjos
em metamorfose celeste
e em ascenção lunar.
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